quarta-feira, janeiro 19, 2011

um convite aos de cá e aos de lá


click na imagem

hoje, é um bom dia para assumir 44

nasci e cresci ao som da Tshala Muana e de outras musicas africanas (e não só), que o meu pai ouvia sempre que lia aos sábados de tarde, sentado na sua cadeira vaivém com desenhos de figuras da cultura tchokwe.

não percebia o que significavam aqueles momentos, apesar do esforço que fazia para entender o porquê do brilho de alegria que via nos olhos do meu pai, ainda assim, nada percebia!

e hoje, passados todos esses anos e apesar de tantas saudades que sinto daqueles momentos, infelizmente continuo sem perceber as palavras da Tshala Muana!


[Falo português como língua nativa – se considerar isso como sendo a língua em que se apreende o sentido do mundo. Mas tenho certa relutância em admitir que o português seja a minha língua materna. E isso não tem que ver com qualquer tipo de recalcamento ou complexo de ex-colonizado. Sempre me pareceu que o português me tinha sido ensinado no lugar de outra língua. Assim, como sobreposta, como que uma prótese. Ter sido educado em português à semelhança de todas as pessoas que nasceram na mesma altura que eu, coloca-me numa espécie de fronteira, numa terra de ninguém. Não percebo o que dizem as pessoas que se expressam em línguas nacionais. Não percebo as suas tradições, nem os seu provérbios, nem as suas crenças. Mas esta perda não me autoriza a reivindicar coisa outra que não seja África. Sou apenas um africano que percebe muito pouco do que é essencialmente africano.

Sou produto da colonização à portuguesa, que, para usar uma metáfora, pode ser descrita como um processo de tradução. Os portugueses chegaram a Angola, e dedicaram-se a traduzir coisas, a assimilá-las, a torná-las consumíveis e perceptíveis à sensibilidade ocidental. Ou seja, traduziram-nos para português. Da cultura africana ficaram apenas com aquilo que lhes interessava, à maneira dos tradutores antigos, com poderes discricionários para reescreverem os livros dos outros. E como em muitas traduções, cometeram-se erros. Por vezes, demasiado crassos.
António Tomás, Poligrafia das Páginas de Jornais Angolanos]

terça-feira, janeiro 18, 2011

segunda-feira, janeiro 17, 2011

terça-feira, janeiro 11, 2011

um convite aos de cá

o António, é um amigo, que conheci através da amiga de uma amiga minha, que alguns anos atrás, recebeu o convite da outra amiga para o lançamento do primeiro livro dele O Fazedor de Utopia. daí em diante, surgiram os e-mail´s que nos aproximaram, as palavras que semanalmente escreve para o Novo Jornal e sempre que ele está por cá, há sempre tempo para uma conversa com sabor especial.

que quarta feira, o momento seja agradável.

sexta-feira, janeiro 07, 2011

A Estética do Óbito

Tive, recentemente, a infelicidade de perder um membro da minha família. Tal desgraça constitui, e tem constituído ainda, uma oportunidade para observar um dos mais interessantes fenómenos sociais em Luanda: o óbito.

Foram muitos anos de colonialismo e evangelização, foram pelo menos 10 anos de experiencia socialista, a qual tinha por base libertar os angolanos de praticas atávicas, ou “obscurantismo”, na linguagem da época, mas, no fundo, os angolanos, e mesmo os luandenses, nunca chegaram a ser modernos. E é nos óbitos, ou na estética dos óbitos, que se revela o substrato cultural que permeia o presente social de grande parte dos angolanos.

Em Angola, onde a economia virou uma autêntica selva, em que para muitas famílias colocar comida à mesa é uma luta constante, em que vale tudo, desde roubar, ficar a dever, pedinchar, ou vender banha de cobra, é interessante notar a solidariedade que desponta quando alguém está na eminência de morrer, ou quando alguém morre de facto.

Os angolanos, em particular, como os africanos, no geral, vivem com os seus mortos. É, no fundo, como se os antepassados nunca os abandonassem. Ou, posto de outra maneira, como se os mortos e vivos formassem um equilíbrio cosmológico. Qualquer pessoa que morre passa do mundo do vivo para o mundo dos mortos, e deixa o mundo dos vivos em desequilíbrio.

Daí se calhar duas ideias cuja evocação, ainda que nem sempre sejam claramente enunciadas, surgem quando a morte tem lugar: culpa e feitiçaria. Para muitos angolanos, mesmo os mais ilustrados, é difícil conceber a ideia da morte natural. A morte é sempre causada pela vontade de uma outra pessoa. E em muitos casos, a pessoa que causa a morte de outrem merece a mesma sorte.

Vi, uma vez, na praça de táxi do Roque Santeiro, um taxista cujo carro tinha perdido os travões e que foi embater contra a barraca de uma vendedora. O motorista abandonou o carro, e fugiu, mas foi detido pelos populares. Comprovou-se depois, que a vendedora da tal bancada envolvida no acidente não estava morta. E assim o taxista foi solto. Tenho a certeza de que o taxista não tinha saído vivo daquele local se tivesse morto a senhora. Justiça popular, ou olho por olho, é um fenómeno que não é estranho a quem tem vivido em Luanda nos últimos 20 anos.

Neste caso, a causa é evidente, e a justiça pode ser feita porque há um culpado. Mas quando a causa não é evidente, é preciso ligar dois fenómenos: por um lado a morte, por outro, o causador da morte, e assim surge a feitiçaria, que, neste caso, é mais um sistema de explicação. Ou mais uma forma de lidar com o inexplicável. Porque uma coisa é feitiço existir, outra é feitiço funcionar. Ir ao feiticeiro e pedir a morte e alguém, depois constatar-se que esta pessoa morreu, não significa que esta pessoa tenha morrido de feitiço. Apenas explica que alguém foi ao feiticeiro e que outra pessoa morreu.

É destas questões, culpa e feitiçaria que originam muito provavelmente a solidariedade que existe à volta dos óbitos e funerais. Porque esta solidariedade tem também o seu quê de cosmológico. Porque a morte justifica a suspensão da ordem social. O luto, a que a família e o ente dos mortos se recolhem, abre um tempo fora do tempo. Ou seja, o luto abre um momento extraordinário, de excepção, em que as pessoas, em nome desta solidariedade, em nome deste sentir bem ao lado dos próximos, têm aval para fazer coisas extraordinárias.

E o Estado joga aí, e sempre jogou, um papel crucial. Ou seja, as praticas dos óbitos em Angola foram-se moldando na relação entre o Estado e a sociedade. Há quem diga que a solidariedade dos funerais tem que ver com a tradição, mas a tradição nunca é uma realidade imutável. Os óbitos foram-se adaptando quer a certas praticas impostas pelo Estado, como o recolher obrigatório, que obrigava as pessoas a pernoitar no velório, quer a natureza paternalista do Estado socialista. Era não só o Estado que permitia aos trabalhadores gozar semanas, senão meses, de licença em caso de morte de um próximo, como havia também mecanismos, como as requisições de peixe, e cerveja, que o trabalhador tinha de manipular para alimentar as pessoas no seu funeral.

Subjacente ao óbito, está, mostrar aos mortos um respeito e uma reverência, que, muitas vezes, nunca mereceram enquanto foram vivos. É bem provável, porém, que este respeito, ou esta reverência, nada têm que ver com o morto em si, mas com a ideia da morte, e o que isso produz no contexto do equilíbrio de determinado grupo, ou rede social. Ou isso pode ainda indicar, talvez, que aos respeitarmos os nossos mortos, estamos a declara a forma como desejamos que a nossa memória seja tratada, quando um dia já não fizermos parte deste mundo.

António Tomás