sexta-feira, dezembro 24, 2010

feliz natal para todos que por cá ainda vão passando. obrigado

Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Morais se tinha medo da morte.

O poeta respondeu com um sorriso:

- Não, minha filha. Tenho saudades da vida.

De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo. Estou certo que o meu pai anda chateadíssimo no cemitério, sem livros, sem música, sem oportunidades para ser desagradável. O meu avô, tão diferente do filho, já deve ter feito montes de amigos por lá, todos a comerem percebes à volta de uma mesa grande. E o meu tio Eloy joga às cartas com os outros, a sorrir de satisfação quando lhe saem naipes bons. Costumava inchar na cadeira, a olhar para eles, repetindo

- Muito bem, senhores oficiais

da mesma maneira que, se as coisas corriam mal, se lamentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim

e vejo-o daqui, sem uma prega, elegantíssimo. A minha tia Madalena lê livros grossos, a minha tia Bia ensina piano e eu sinto medo de não haver papel, nem caneta, nem amigos, nem mulheres. Mas, voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá? Da minha filha Isabel ao levá-la a um museu para lhe encher de amor pela beleza os tenros neurónios:

- Estás a gostar?

- Acho um bocado aborrecente

e não tive coragem de dizer que também acho os museus um bocado aborrecentes. Não ligava muito aos quadros, ou antes não ligava um pito aos quadros mas, na época de eu criança, havia escarradores cromados, a cada dez telas, que me interessavam muitíssimo. O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e, não estou a brincar, envergonho-me disso. No transporte para o liceu sempre admirei os cavalheiros que tiravam um lenço muito bem dobrado da algibeira, o abriam numa lentidão preciosa, puxavam a alma dos pulmões, depositavam-na no lenço num gorgolejo de ralo, competente, profundo, examinavam a alma com satisfação, tornavam a dobrar o lenço e faziam o resto do trajecto com ela nas calças. Talvez seja por isso que nem lenço uso: quando me acho fungoso luto comigo mesmo para não limpar o nariz na manga: a maior parte das vezes consigo. Vou ter saudades daqueles que se assoam com dignidade e estrondo e dos outros, mais comuns, detentores de um poder de síntese que, desgraçadamente, me falta. Passa uma rapariga e eles, logo

- És muita boa

numa concisão admirável, a acotevelarem um sócio distraído

- Viste?

O sócio já só apanha a rapariga ao longe mas concorda por solidariedade

- Chega o verão e descascam-se logo

e o do poder de síntese remata

- Todas umas putas

que é um ponto final que não admite acrescentos, ei-las catalogadas em definitivo, de modo que se passa aos méritos da cerveja preta que, além de acabar com a sede, é óptima para tirar nódoas, seja na camisa, seja no estômago

- Até limpam as úlceras

limpam as úlceras e amortecem o presunto:

- Se as pessoas mamassem uma preta a meio da tarde ninguém adoecia.

Segue-se a inspecção da sola do sapato

- Olha-me para a porcaria deste buraco aqui

e um discurso acerca das fragilidades e misérias do cabedal. Terei saudades disto? Do senhor da mercearia ao pé de mim vou ter de certeza. Está sempre sozinho na loja, atrás do balcão, educadíssimo. Se lhe comprar um maço de cigarros e disser

- Obrigado

responde de imediato

- Obrigado somos nós

num tom papal, que me leva a imaginá-lo cercado de criaturas invisíveis para mim mas óbvias para ele, uma multidão de espectros sobre os quais reina com benevolência. Tem sobrancelhas grossíssimas que não vão inteiramente com os seus gestos fidalgos. Nunca vi ninguém entrar na mercearia a não ser eu. Mentira: uma ocasião estava lá uma velhota que comprou dois pêssegos, a contar o dinheiro como se estivesse a despedir-se para sempre de um filho único. Lembro-me que fitou as moedas, até elas se sumirem na gaveta, numa ternura que me rasgou ao meio o coração. Depois sumiu-se numa portinha ao lado, com uma pantufa no pé esquerdo e uma bota no direito. O degrau da portinha levou-lhe um quarto de hora a escalar. O senhor da mercearia, esquecido do

- Obrigado somos nós

abriu-me os horizontes

- É a dona Esperança que já foi muito rica.

Foi muito rica e agora um pêssego, uma sopinha talvez, os restos da riqueza no prego. Terei saudades disto, também? Para citar a Isabel a vida, de tempos a tempos, é aborrecente. Será que, há séculos, a dona Esperança muito boa? Será que o marido cuspia em condições? É pouco provável porque o marido, segundo o senhor da mercearia, doutor.

- Doutor de tribunais

especificou ele com admiração

- Doutor de tribunais

escutei eu já na rua. Penso que se o meu tio Eloy visse aquilo comentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim.

Eu também não, tio, eu também não. E, já agora, quando Vinicius de Morais se referia a saudades da vida em que vida pensava?

António Lobo Antunes, revista Visão

quarta-feira, dezembro 22, 2010

segunda-feira, dezembro 13, 2010

descobertas

Revista Pessoa

o homem usava um desses olhares esguios, espécie de mirada tangencial que se direcciona mais para um tempo do que um lugar, e falou tão baixo que tive que diminuir o tom da minha respiração para poder ouvi-lo: “vai uma palavrinha?

finalmente entendi, e busquei – com o olhar – as suas mãos calmas, julgando que nelas encontraria alguma explicação para aquela oferta, mas eram simplesmente as mãos nuas e limpas de um homem tranquilo, vestido de um modo obsoleto mas discreto, usando um fato completo de cor cinzenta que no brasil, como se sabe, atende pelo nome de “terno”.

“desculpe, não entendo”, balbuciei. o homem convidou-me a sentar num simpático banco de jardim, num dos lugares mais frescos do mundo, o chamado jardim botânico, na simpática (alguns dizem “maravilhosa”) cidade do rio de janeiro.

pergunto se você está interessado em comprar uma palavra muito especial?

e sim, eu começava a entender o episódio, não no sentido concreto que seguisse uma qualquer lógica das transacções comerciais como as conhecemos no mundo moderno, mas entrando já no campo das negociações metafísicas, género de trocas humanas que lidam com o inexplicável e em cujo âmbito a pessoa deve decidir se quer ou não entrar.

“de que palavra se trata?”, procurei saber. “há informações que só se conseguem mediante a troca de um certo valor”, o homem anunciou tranquila mas seriamente. “e de quanto estamos a falar?”, procurei a minha carteira com medo que ela já lá não estivesse. mas estava. não se tratava, de modo algum, de um burlador vulgar, ou de um esquema combinado em grupo ou com mais um compincha, para me sacarem a moeda “real”. era um esquema, sim, mas bem mais profundo. “quanto acha que vale uma palavra inventada e explicada por guimarães rosa?” – o homem viu que os meus olhos brilharam e a partir daí eu estava, por assim dizer, caçado.

desembolsei a quantia acordada, que não foi pouca, antes mesmo de saber que vocábulo era. o homem discursava lentamente. depois de ter guardado o dinheiro, fumava com estilo, mirava as árvores, contemplava os pássaros e, mesmo de olhos abertos, era nítido que viajava para uma memória comprida como um rio e sólida como uma ponte de madeira que formasse o cais para aonde me convidava a viajar também.

o mestre guimarães rosa ofereceu a palavra ao meu falecido pai, mas eu estava presente, e posso garantir-lhe que sou herdeiro único – tive que acreditar. o chá havia sido servido, guimarães rosa fumava, papai não gostava de fumar, mas na presença do mestre, permitia..., a sala era invadida por cheiros de chá, café, flores e o perfume do fim da tarde. as crianças, desde que silenciosas, eram autorizadas a permanecer durante os serões. e guimarães falou, explicou, deu acesso à criação. que era uma palavra que ainda não havia e fazia falta; que era palavra de retenção – mas redonda, que era assim um modo de dizer que fazia falta na nossa língua, dita portuguesa.

que palavra, afinal?” – quis saber, tentando entender se o preço se justificava. o homem, calmo, alisando com a mão a prata do seu lindo relógio de bolso, levantou-se, respirando fundo. “veja, as palavras não têm preço. custam o que queremos dar por elas...” levantei-me também: “ou custam o que decidimos que valem no momento de as vendermos... confesso que é a primeira vez que compro uma palavra.”

o olhar do homem alterou-se, tornou-se fresco. veio da viagem e regressou ao momento presente, menos intenso, porém ainda em suspensão. “privácia”, disse.

para atenuar o meu silêncio e encantamento, acrescentou: “guimarães rosa achava que essa palavra nos estava em falta. não é privacidade; é privácia. vem do inglês. como em privacy. e foi assim...

voltei a sentar-me, vendo-o partir, contando o dinheiro e guardando-o novamente no bolso. de trás, confesso, não parecia o mesmo homem. talvez mais alto, talvez mais denso. pareceu-me ouvir a promessa de que nos voltaríamos a ver. no ar, deixava um conselho: “a mesma palavra não pode ser vendida duas vezes.” nem outra coisa me tinha ocorrido. guardaria a palavra na minha colecção privada de objectos internos.

tive apenas o leve presságio que talvez guimarães rosa ficasse magoado com o episódio. “ou talvez não.”

Ondjaki . Angola . Vai uma palavrinha...?

sexta-feira, dezembro 10, 2010

quinta-feira, dezembro 09, 2010

quarta-feira, dezembro 08, 2010

um convite aos de cá e aos de lá

para acompanhar via internet, televisão, jornal, rádio ou por amigos que lá vão estar.