quarta-feira, junho 17, 2009

Barroco Tropical

entrei, sentei-me e abri a pequena embalagem que encontrei por cima da mesa. trazia um embrulho com um bilhetinho:
quando o vi na montra, pensei logo em ti!
Z.
os dois primeiros capítulos já eram. logo, a noite será em claro. 

...
Segui o olhar de Kianda e vi uma mulher a cair do céu. Caiu – veio caindo, nua, negra, de braços abertos – quase ao mesmo tempo que o raio.

O raio fez explodir o imbondeiro. Um meteorologista explicou-me, há muitos anos, que os raios podem fazer explodir as árvores ao provocarem a súbita ebulição da seiva. A mulher afundou-se entre o capim alto, não muito longe do carro. Aproximei-me. O corpo estava enterrado na alma. Tinha a cabeça deitada para trás. Reconheci aqueles olhos abertos, muito negros, ainda cheios de luz. Recuei aterrorizado. Não deixei que Kianda a visse:

- Vamos!
- Vamos?! E ela?
- Ela está morta, amor! Não se incomoda queres chamar a policia?
- Não, não! a policia não. Não quero chamar ninguém. Sabes muitíssimo bem que não nos podem ver juntos.

Abracei-a. Kianda tremia. Levei-a para o carro, sentei-a no lugar do morto, e conduzi em silêncio de regresso a Luanda. Quando chegámos ainda a noite não descera sobre a cidade. Estacionei o carro a dois quarteirões do prédio dela. Debrucei-me para a beijar. Kianda afastou o rosto:

- Não! nunca mais.

Saí. Ela tomou o meu lugar, colocou o carro em andamento e foi-se embora. Mandei parar um táxi. Durante muitos anos não houve em Luanda táxis individuais; havia somente táxis colectivos, os candongueiros, destinados a servir o povo.

[O Povo, ou Eles, é como em Angola nós, os ricos, ou os quase ricos, designamos os que nada têm. Os que nada têm são a esmagadora maioria dos habitantes deste país.]

O motorista era um congolês obeso. A pele do rosto, muito lisa, brilhava como um espelho à luz acobreada do final do dia. Abriu para mim um sorriso enorme:

- Para onde vamos, paizinho?
- Não sei. – Confessei numa voz sem cor. O Medo não me deixava pensar. – Para qualquer lado.
O homem voltou a sorrir:
- Não se preocupe. Eu levo-o lá.
Meia hora depois deixou-me à porta de um pequeno bar. Reparei no néon a pulsar sobre a porta – “O Orgulho Grego”. O sorriso do taxista tinha agora o tamanho do mundo:
- Entre e pergunte pela Mãe Mocinha. Ela saberá dizer-lhe para onde ir.
Nunca se engana.

terça-feira, junho 16, 2009

sexta-feira, junho 12, 2009

Mart´nália, ontem ao vivo no Miami Beach

o MC, um engenheiro de som que conheci em Porto Seguro, está na comitiva que veio com a Mart´nália dar dois espectáculos em Luanda. conhecemo-nos por causa da fotografia, ele com a sua Nikon e eu com a minha Canon. trocamos e-mail e durante todo este tempo as mensagens vinham e iam sem nunca termos falado sobre o Attelier.

ontem, assim que terminou o show veio ter comigo e disse: estou curioso para entrar naquele espaço em fundo preto e ler o post sobre a Mart´nália

poderia começar pelo atraso de meia hora mas a entrada dela foi de tal maneira, que ao fim da primeira música ninguém mais se lembrava da seca!

sempre reparo que os brazucas aqui na banda recebem bem os seus músicos e ontem não foi diferente, o carinho e a admiração que cruzava o ar contaminou o palco e não houve no show aquela parte tímida do início! a menina, entrou a rebentar.

os primeiros convidados estavam ausentes, cantou Gilberto Gil, Caetano Veloso e Martinho da Vila para depois chamar os convidados presentes. Yuri da Cunha e Wiza, grande Wiza num momento encantador. 
















quinta-feira, junho 11, 2009

personagens dos meus dias XIV

das personagens que me cruzam a vista no café Flor da Ce, Fernando Pessoa é o que mais tempo rouba da minha atenção.

cabelo branco, bem penteado e com risco a esquerda, parece um homem culto e que não aceita largar os hábitos do passado. chega sempre a mesma hora, senta-se constantemente no mesmo lugar e da mesma forma, pernas cruzadas para direita de maneira a "mostrar" as meias de cores tropicais, camisa excelentemente passada a ferro, calças com vinco único e o pedido nunca difere; um pastel de natas, um sumo de laranja natural e um café.

se não lê, escreve. um livro, um jornal, uma revista ou um caderno de apontamentos sempre lhe fazem acompanhar nas primeiras horas da manhã. já o vi com António Lobo Antunes, Francisco José Viegas, Manuel Rui Monteiro, Nic Kelman e outros, lê também a FHM e a Veja, quando não está concentrado a escrever naquele caderno com folhas quadriculadas e capa cor do mar. numa manhã de coragem, ainda lhe vou perguntar se escreve sobre quem e para quem.

ontem, não foi diferente. Fernando Pessoa, chegou, sentou, pediu e cruzou as pernas para ler Rio de Sangue. quando me aproximei, pousou o livro e retirou o Ipod Nano do bolso para desligar a música. nunca me passou pela cabeça que aqueles fones que sempre usa seriam de um Ipod! convidou-me a sentar e perguntou porquê que observava os seus movimentos. respondi-lhe e continuamos a conversa.

amanhã, vou oferecer-lhe o cd Stória, Stória... da Mayra Andrade e esperar com curiosidade a surpresa que ele me trará.

quarta-feira, junho 10, 2009

Xinti, Xinti, Xinti

Xintimento di meu, que é teu tambem,
Essa luz de música que me atravessa,
Ilumina uma silhueta feita de fusões,
Trocas e contágios muito bonita bué!
Bué swing no coração manitos! Que bênção!
Tanto. Que sinto que nos abraça a todos em colectivo.
É o sentir friu, e depois o sentir aconchegado
Quando um raio de sol poisa em nós
Fugazmente... e mais importante: Totalmente. 
É o sentir-se total por um mumentumm, um sopro
De vida, rápido e eterno. Feliz. Luz.
É ter o coração cheio de vazio e sede de largura
E altura e ter de o enfiar entre as quatro
Paredes de uma mente pequena
De tão xeia de merda. Pardon.
Minha Mãe do céu! Eu sinto-me viva. Acesa.
Vivificada. Inflamada. Enlaçada, nessa dança
Que é meu caminho de spirit wisperer, ámen.
Deus é amor grande.
Sinto.
Já “não pressinto só”.
Sinto.
Uma magnifica brisa doce na cara,

Magnifica!
Boa companhia, sorriso no coração. Fé. Sem pé!
Larga´ alma no balanço.
X-I-N-T-I.

Lisboa
23-02-09
S.

[ Xinti, Xinti, Xinti, assim se chama o novo disco da Sara Tavares, um álbum doce e com cheiro a caju, é, ontem escutei-o numa sentada só e do nada, parecia que estava no meio de cajueiros.
Eu adoro a Sara, ela sempre me transporta para um lugar inexplicável, ou como uma vez cantou; Prometo a música vai-te embalar * Deixa-te levar de olhos fechados * Tens que te abandonar para poder voar.]

para ti, que nunca me lês!

close yours eyes
trust, reveal your light
music is god´s smile
always inspiring us
flow with the music. Open-hearted
give and receive a little more every moment
come alive with music

music
is living water that quenches my heart´s thirst
music
is the heart´s voice
music 
is the soul taking flight

terça-feira, junho 09, 2009

sábado, junho 06, 2009

agora a pouco









o Paulo já não nos pertence

é verdade, perdemos o Paulo, escapou-nos das mãos e já não podemos controlar a sua fuga!

faz algum tempo que ele perdeu a nacionalidade angolana para ganhar a mundial, e isso, não tem nada de mau, agora, franceses, cubanos, brasileiros, sul africanos, portugueses e não só, podem reclamar que ele também lhes pertence.

a noite começou tímida, havia algum receio do lado do público que por alguns instantes penso que afectou os músicos em palco, a apresentação de um novo disco por vezes encontra por parte do fãs uma resistência normal de quem não conhece as novas canções, mas nada que ele não conseguisse dar a volta.

depois da fase tímida, veio a conversa com o público, contou-nos as historias das novas ketas e de como chegou a ideia de fazer um disco a partir daquilo que via da janela do seu apartamento na rua dos combatentes. foi esquisito ouvi-lo contar o sonho que teve com o Fela Kuti a viver no marítimo da ilha. quem tem um sonho desse!? o resultado não podia ser melhor.




no final, houve palmas, sorrisos, muita satisfação e todos dançaram.


e assim foi a apresentação do novo disco do Paulo Flores, ExCombatentes.

um convite aos de cá

sexta-feira, junho 05, 2009

hoje, é um bom dia para assumir 29

Gostaria de ser lembrado com a mesma melancolia com que me lembro daqueles que perdi.

[a Lita, que agradeço-lhe o Blog Dorado]

quinta-feira, junho 04, 2009

visto de um ângulo diferente

em África, existem muitas coisas "anormais" com as quais nós os próprios africanos nem sempre olhamos para elas do melhor ângulo, coisas do nosso quotidiano algumas vezes marginalizadas, mas que se nos forem retiradas, alteram em muito o nosso habitar. 

em Luanda como noutras cidades africanas é normal cruzamo-nos com estabelecimentos em que o nome dos mesmos estão escritos num pequeno pedaço de madeira, na parede frontal do edifício ou num papel. há placas a anunciar o prato do dia, desenhos com cortes de cabelo ou arte informando que aqui se faz painéis publicitários, reclames, matriculas e muito mais.






a TBWA\Hunt\Lascaris, agência publicitária sul africana retirou o melhor partido destas placas que também são normais em cidades como Joanesburgo e Durban, e para promover a copa do mundo que se realizara pela primeira vez em África, usou o mesmo estilo para criar peças para marca Adidas. as peças, têm tudo para virar cult.








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segunda-feira, junho 01, 2009

o luto da mangueira

a partida de um elemento do nosso passado, geralmente, leva consigo muitos pedaços do passado dos outros elementos que, talvez infelizmente, ficam.

o Gika CD, um magueirinha que estava em todos jogos de futebol na Escola 4, partiu, sem ao menos me dar tempo de retomar a chamada não atendida com o seu número que encontrei no meu telemóvel! o Gika CD, partiu sem saber que muitas vezes roubei historias da nossa infância para alimentar este espaço. o Gika CD, partiu sem saber dos preparativos de um possível almoço de confraternização com os elementos ainda existentes da Rua Comandante N´zaji. o Gika CD, partiu e não deu tempo a tia S, ao N, a G, a A e a C, para um último abraço. o Gika CD, partiu e deixou-nos assim, cheios daquelas recordações do passado.

foi tristemente agradável para mim ver ali, todos os elementos da mangueira, não havia ausentes (incluindo o próprio Gika CD), foi um momento difícil de se ver, os abraços, as lágrimas, os sorrisos, as lembranças, parecíamos um grupo saído do passado.

o V, o G, o E, o PV, o S, o KC, o D, a R, a D, o tio M, a I, a B, o W, o G, o PT, a MJ, o GM, o N, as C, o PP, o F, a L, a S, a C, o PM, etc, muitas etc. o cota Henrique Abranches, outro presente, é que deve ter ficado feliz ou ver os putos que gritavam no seu portão, ali, reunidos como no antigamente.

ao Gika CD, não sei como explicar-lhe que tenho congeladas as lágrimas que por ele deveriam escorrer, amigo, perdoa-me o bloqueio, prometo-te que no dia em que partir te as entregarei pessoalmente.

ao fundo, November Rain, para relembrar o dia em que o Dadão nos apresentou o Slash.

crónica ficcional

Aterrámos numa pequena cidade alemã. Pequena, mas feia. Feia, mas desinteressante. Desinteressante, mas desagradável. De qualquer maneira, no meio do tédio havia uma guia baixinha, pouco vistosa, muito tímida, de óculos, um pouco corcunda, mas entusiasmada.

Avançámos para a pequena carrinha que levava a comitiva. Ainda antes de subirmos para a camioneta, a guia de óculos graduados e sorriso, recebeu-nos simpaticamente e, mostrando o seu profissionalismo, uns segundos depois de se apresentar estava já a falar do século XVI. Falava baixinho, mas falava.

Na pequena carrinha, em menos de dois minutos, as conversas paralelas instalaram-se e subiram de volume.

Todos ignoravam olimpicamente a guia excepto o arquitecto, companheiro de comitiva que estava à minha frente, e que mantinha, aparentemente, a atenção. De trinta em trinta segundos dizia que sim à guia, com a cabeça.

A certa altura, houve claramente uma quebra psicológica na guia. Estava a falar do século XVII para uma comitiva de vinte e uma pessoas e vinte falavam entre si sobre tudo, menos sobre a cidade que se passeavam. O facto de a delicadeza do arquitecto fazer com que a sua cabeça, de tempos a tempos, se mexesse, não era suficiente para uma profissional. Estava a passar por um vexame.

A princípio, a guia, tentando reagir à adversidade, falou mais alto, mas tal só teve como resultado o aumento das conversas paralelas.

Depois, ela quebrou claramente a relação que mantivera até ali com o seu profissionalismo. Algo ultrapassara o mínimo de decência civilizacional que uma guia alemã exige. Começou, pois, a dar informações erradas.

A guia dava informações absurdas, vintes elementos da comitiva não a escutavam e apenas um, por delicadeza, mantinha a sua cabeça dizendo que sim, a intervalos quase exactos.

A guia começou então a insultar. Com um tom de voz exaltado apontava para os elementos da comitiva e chamava-lhes nomes, alguns em alemão. Mas era como se nada se tivesse alterado: o arquitecto dizia que sim com a cabeça e os outros falavam de outros assuntos.

Depois dos insultos, a guia manteve-se uns segundos em silêncio e só depois, ao ver que tudo continuava na mesma, pregou um enorme estalo no elemento da comitiva que estava no banco da frente, a falar para o colega do lado.

A guia retomou as explicações por um minuto, minuto e meio, mas de facto nada se alterara. O ruído da comitiva era ensurdecedor.

Foi então que a guia, puxando surpreendentemente de uma navalha, e sem pensar certamente nas consequências, a espetou no coração do elemento da comitiva que estava na primeira fila. O corpo caiu para frente, primeiro batendo num pequeno ferro, depois estatelando-se no chão com o estrondo, estrondo esse que diluiu por completo nas vozes alheadas dos elementos da comitiva.

Tudo prosseguiu como até ali. O elemento da comitiva que havia acabado de perder o seu interlocutor, virou-se para os seus dois companheiros de trás e rapidamente entrou nessa outra conversa que há muito decorria.

Algo, porém, estava já em marcha e era imparável. A guia, depois de endireitar os seus óculos, espetou a navalha no segundo elemento da comitiva; depois no terceiro; depois, no quarto, no quinto.

Apesar do massacre, os elementos sobreviventes da comitiva continuavam embrenhados nas suas conversas particulares. O arquitecto, a cada punhalada, dizia que sim com a cabeça.

O massacre prosseguiu depois seguindo a ordem pela qual os elementos da comitiva estavam sentados.

Apesar do sangue, o condutor, lá à frente, mantinha-se imperturbável. Com profissionalismo, não cometia a indelicadeza de se intrometer no que lá atrás ia sucedendo. Acelerou mesmo um pouco, pois a hora que os elementos da comitiva haviam dado como limite para o regresso aproximava-se.

A guia, com os óculos já tortos em relação à cara, prosseguia, entretanto, com uma meticulosa impiedade. O arquitecto ainda teve tempo para dizer uma última vez que sim com a cabeça, mas a guia não o poupou.

Toda a comitiva jazia já no chão, quando o condutor, que passara por todos os pontos previstos, parou exactamente no sítio onde a visita turística começara. Estava terminada. E à hora prevista.

A guia retomara agora o seu posto, no banco da frente, e falava sobre a estrutura piramidal dos azulejos, uma das muitas maravilhas da cidade de Osnastruck.

Gonçalo M. Tavares, Revista Visão