De quem são estes passos? De uma pessoa que morou aqui antes de nós, de ti, de mim que não paro quieto para diante e para trás no corredor, à procura de não sei quê, a tentar desembaraçar-me de não sei quê, a pensar não sei em quê, com medo? Não acredito que meus porque não ando assim neste ritmo, com um dos sapatos mais pesado que o outro, as tábuas não costumam estalar quando caminho e agora estalam, as paredes não costumam vibrar e agora vibram, o pajem de porcelana estremece na cómoda, sente-se a respiração das cortinas, uma vidraça a tremer, uma pausa e logo a seguir os passos de novo. Não me mintas, não me escondas nada, de quem são estes passos que se detêm à entrada da sala, me espiam, continuam? Ouvem-se solas de sapatos novos que parecem rãs de charco, uma respiração acho eu, de tempos a tempos um suspiro que se aproxima e afasta, esses sons da garganta que antecedem a fala e não falam, desistem, dão ideia de se ir embora e não se vão embora, não me deixam, de quem são estes passos? Se eu pudesse levantar-me da cama, vestir o roupão, ir ver. Olha, apareceu-me agora isto de repente, será a morte? Não me cheira que seja a morte porque a morte é uma mulher e os passos de homem ou pelo menos de uma coisa parecida com um homem embora mais pesada que um homem, um fantasma não porque os fantasmas leves e sem sapatos e depois, que eu saiba, os fantasmas não coxeiam nem fazem ruído algum, se calhar é o sangue nos meus ouvidos, qualquer coisa em mim, uma peça sei lá, que se desregulou a cambaleia, se o médico me abrisse a barriga o que encontrava dentro?
(...)
António Lobo Antunes
/encontrei prazeres na escuridão, que cá fora não os vejo/
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