A preta velha no metropolitano, de saco de plástico nos joelhos, ao lado dela um senhor branco que tirou um lenço da algibeira e começou a chorar e de pé, agarrado ao varão, um rapaz com um estojo de saxofone e cabelo pintado de azul. Os três tinham os olhos vazios. O meu reflexo na janela: olhos vazios também. O que via no saco de plásticos eram legumes, pão. O senhor branco chorava de feições imóveis e de quando em quando limpava as bochechas com o lenço. O rapaz do saxofone estalava os dedos ao ritmo de uma musica secreta. Numa das paragens entrou uma criatura bengala, a caminhar aos sacões como se o chão da carruagem ondulasse. Num dos vidros, a spray cor de rosa, amo-te cláudia. Por baixo do amo-te Cláudia um spray verde amas o tanas, e por baixo do amas o tanas, a spray amarelo, vão os dois à merda. A napa de um dos bancos rasgada a canivete. A preta velha usava uma espécie de turbante, o rapaz do saxofone um boné de pala para a nuca que tinha impresso NY Giants. A criatura de bengala respirava de boca aberta, preocupada com um adesivo, já cinzento, nas costas da mão. A aliança estrangulava-lhe o dedo: nem com sabonete saía, havia de ser preciso cortá-la. Na paragem seguinte um par de adolescentes a cochicharem risinhos. Uma perguntou à outra
a raspar uma nódoa da manga com a unha sem que a nódoa saísse. Mostrou a nódoa à amiga, interessaram-se pela nódoa. Nas gengivas da criatura de bengala dentes postiços inseguros: às vezes é preciso atarrachar as placas. Qualquer mecânico faz isso com um alicate. O metropolitano dava ideia de rolar ao acaso, na direcção de nada.
Uma voltas com o alicate nos arames e experimenta lá agora se ficou bem. Ficou demais: desatarrachar um bocadinho
com a língua a tacteá-los, depois o mindinho, depois a língua outra vez. A preta velha ajustou as nádegas no assento, o homem branco procurou uma lágrima na bochecha, com o lenço, e falhou-a. Quem nunca falhou uma lágrima levante o dedo e as adolescentes não cessavam de pensar, seríssimas. Pulseiras de baquelite e borracha, argolinhas de metal na asa do nariz. amo-te cláudia. A cláudia e o que a amava onde estarão agora? Numa das estações um cartaz a favor do casamento homossexual coberto de insultos: o maior a carvão, em maiúsculas imensas, morte aos paneleiros. A criatura de bengala emitiu
A preta velha tornou a ajustar as nádegas no banco, um vértice de cenoura despontou do saco de plástico e ficou para ali a competir os spray. amas o tanas. Quem garante não amava o tanas, de facto? Isso do amor tem que se lhe diga, acho eu, há-de haver gente que sabe. Não afirmo que sim, não afirmo que não, no que me respeita a Nina talvez, pode ser, não juro, não entremos por aí, há sempre detalhes que magoam, nunca saiu intacto da lembrança da Nina. Não vou chorar como o homem branco de lenço mas enfim, as coisas são o que são e acabou-se. Nina diminutivo de Saturnina, o nome da madrinha
- Cada vez que me chama Saturnina dá-me ganas de matar a minha mãe que não precisou da ajuda dela, faleceu por sua conta, atropelada. A rua quase a pique e um autocarro sem travões colaboraram, a mãe que por sua vez odiava ser Isméria e a Nina
prova que isso do amor tem que se lhe diga, há-de haver gente que sabe. O rapaz do saxofone estalou os dedos com força, apeteceu-me dar uma trincadela no vértice da cenoura, por timidez não dei e o metropolitano cada vez mais depressa, por túneis onde nunca tinha estado antes, na direcção de nada. As estações foram rareando, lâmpadas ocasionais que desaparecem igualmente, uma escuridão imensa lá fora a tornar o amo-te cláudia mais nítido. Afigurou-se-me que alguém me cochichava na orelha
- Cada vez que me chamam Saturnina mas engano meu, não cochicavam.
A única coisa que se ouvia era o som das rodas nas calhas e o estalar dos dedos do rapaz do saxofone. Tal como a preta velha e o senhor branco que tirou o lenço da algibeira tinha os olhos vazios. Os meus vazios também no reflexo do vidro mas não me preocupei: desde que a Nina se foi embora fiquei assim.
António Lobo Antunes
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