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aqui, interpretado por muitos anónimos
quinta-feira, outubro 14, 2010
Milagrário Pessoal
...
Muito bom dia, desculpe se a incomodo, disse, quando a telefonista me atendeu. A boa educação é um luxo do século passado, ao qual as telefonistas e secretárias ainda são sensíveis. Pretendo falar com a jornalista Mara Bruto da Costa.
Mara, explicou a telefonista, estava ocupada numa reunião. Pediu-me o meu número de telefone, e assegurou-me que a jornalista devolveria a chamada o mais rapidamente possível. Não esperei, com efeito, nem dez minutos. A voz surpreendeu-me. Aveludada e cheia e quente – com carácter. Dou-me conta, enquanto escrevo, que adjectivo a voz dela como se fosse um vinho, queremos com isso significar que possui um alto teor alcoólico. A voz de Mara pareceu-me, é bem verdade, embriagante. Apresentei-me. Tive sorte. A jornalista disse-me que lera o meu testemunho sobre a guerra civil de Espanha. Ficara interessada em saber como é que um jovem anarquista angolano, muito jovem mesmo, se fora envolver num conflito tão distante. Trocamos algumas palavras sobre o livro. Aproveitei o primeiro silêncio para explicar a razão do telefonema:
Trabalho num ensaio sobre neologismo. Uma das suas reportagens chamou-me atenção.
Não estranhou. Não fez perguntas. Pediu-me para passar pelo jornal ao fim da tarde, lancharíamos num café próximo. Eram dezoito horas em ponto quando me apresentei ao porteiro. O Público está instalado num edifício elegante, em Picoas, próximo de um parque interior, com numerosos cafés e restaurantes. Mara desceu. Imaginei-a alta, de pele escura e cabelos lisos, apanhados numa longa trança. Acertei apenas no tom da pele. O cabelo, curto, espetado, dava-lhe um ar um pouco masculino, agressivo, que os doces olhos amendoados logo desmentiam. Levou-me até uma esplanada. Vinha caindo uma luz de Outubro, rasa e frágil, dourada como as folhas das árvores. Ela pediu um café; eu, um chá de cidreira.
O senhor está muito bem. Dava-lhe, no máximo, sessenta e cinco.
É o problema das pessoas como eu, que viveram demasiado tempo, podem tirar-nos duas décadas do lombo e ainda assim continuamos velhos.
Mara sorriu:
E então, o que quer de mim?
Repeti o que lhe dissera ao telefone: estava a trabalhar num ensaio sobre neologismo e ao ler, dias antes, a reportagem de uma visita a Olinda, assinada por ela, deparara surpreendido com três palavras desconhecidas. Disse-lhe quais eram. Gostaria de saber onde as encontrara:
São novas?! Abriu ainda mais os belos olhos numa expressão de genuíno espanto. Não, não podem ser palavras novas. O senhor desconhecia essas palavras?
Desconhecia. Nunca antes foram utilizadas, ao menos em Portugal. Não estão dicionarizadas.
Estranho! Mara semicerrou os olhos, pensativa. Tem graça, tem mesmo muita graça. Li em algum lado que o português europeu se modificou mais, nos últimos séculos, do que a variante brasileira.
Sim, em parte sim. As periferias tendem a ser mais conservadoras do que o centro.
Então não podem ser arcaísmos? Palavras que desapareceram em Portugal mas que continuam a ser utilizadas no Nordeste do Brasil? Por isso nos parecem tão familiares. Talvez eu as tenha escutado lá, no Recife, em Olinda, e de tal forma me pareceram minhas que as comecei a utilizar sem me aperceber disso.
É possível, concordei. Infelizmente essas palavras também não foram dicionarizadas no Brasil. Não as encontrei em livros, em jornais, em blogues, em parte alguma, nem aqui nem lá, antes de terem aparecido pela primeira vez no seu artigo. Faz ideia onde as possa ter escutado?
Mara sacudiu a cabeça. Os olhos brilhavam. À nossa volta a cidade escurecia. Era como se a luz da tarde houvesse deslizado inteira para dentro deles. Lembrei-me de uma mulher, numa vida anterior, que me atraía com o fogo de uns olhos idênticos. Tentei concentrar-me no que Mara me dizia:
Foi em Olinda num pequeno bar. Nem sei se é possível chamar-lhe de bar, uma mercearia, na Rua do Amparo, chamada Bodega do Veio, onde se vende de tudo um pouco, desde latas de sardinha a queijo coalho, e que nos últimos anos se tornou, ao fim da tarde, um ponto de encontro da juventude local. Não há mesas. Bebe-se de pé, no meio da rua, a rir, a conversar. Uma festa. Eu já tinha tomado três cervejas quando se aproximou de mim um senhor de certa idade. Achei-o deslocado, entre os rapazes de bermudas coloridas, as meninas com o umbigo à mostra. Vestia um fato de linho, sapatos brancos de laca, e trazia na cabeça um panamá impecável, como nos filmes. Reparou no meu sotaque e quis saber se eu era portuguesa. Disse-lhe que sim, alfacinha, e ele pôs-se a falar sobre o Mosteiro dos Jerónimos, os pastéis de Belém, as pequenas ruelas, no Chiado e Bairro Alto, por onde terá cirandado Fernando Pessoa. Quando lhe perguntei quantas vezes visitara a cidade, sorriu, divertido: nenhuma. Nunca na vida saíra de Pernambuco. Apresentou-se: Alexandre Anhanguera, poeta. O professor sabe quem é?
Sim. Confirmei. Alexandre Anhanguera publicou nos anos cinquenta, com certo sucesso, uma recolha de poemas de inspiração sebastianista. Li alguns versos, em antologias, e pareceram-me um tanto ou quanto bizarros, no que respeita à temática, mas não inteiramente ruins.
Em 1838, o beato João António dos Santos sonhou com Dom Sebastião. O jovem rei assegurou-lhe que ressuscitaria nos sertões de Pernambuco, com o objectivo de ali instalar um reino de justiça e prosperidade, sendo para isso necessário uma cerimonia durante a qual as duas enormes pedras da serra do Catolé teriam de ser lavadas com sangue humano. O movimento, retomado pelo cunhado do beato, João Ferreira, conseguiu levar muitos milhares de fiéis para a região. Oitenta deles foram atirados do alto das pedras. Dom Sebastião, ao que parece, nunca apareceu. Talvez achasse imprescindível um pouco mais de sangue.
Alexandre Anhanguera escutou, em criança, as lendas que se criaram à volta dos seus conterrâneos sebastianistas. Aquilo impressionou-o. Criou um movimento para o resgate e exaltação das tradições locais. Anhanguera, a propósito, é um apelido tupi. Significa alma antiga, ou vida antiga, e nomeia uma entidade protectora das florestas e dos animais bravios. Os jesuítas, que no inicio da colonização portuguesa se dispuseram a catequizar os índios, confundiram Anhanguera com o diabo. O nome não significa que Alexandre possua ascendência indígena. No século XIX, movidos por sentimentos nacionalistas, muitas famílias da aristocracia brasileira trocaram os apelidos portugueses por outros de origem tupi.
Mara escutou-me até ao fim. Os jornalistas são bons ouvintes, gostam de escutar. Disse-me finalmente, que se lembrara de Alexandre Anhanguera ao ouvir-me falar de neologismos. O velho contara-lhe uma história um pouco estranha. Divertida, mas um pouco estranha.
Gravei a conversa. Tenho-a aqui, no meu iPhone. Quer ouvir? Acho que vai gostar.
[as partidas, muitas vezes não significam apenas ferias, descanso, cinema, teatro, exposições... significam também, puder realizar muitos objectivos que infelizmente em Angola ainda são irrealizáveis devido a variadíssimos factos, entre eles, o custo das coisas.
o regresso, significa então que muitas dessas coisas vêem na bagagem. a música, os filmes e indiscutivelmente os livros. Milagrário Pessoal é o novo romance do José Eduardo Agualusa, uma viagem de amor que passa pela história da língua portuguesa e que infelizmente, quando aterrar nas prateleiras das pouquíssimas livrarias que Luanda tem, terá o preço de um objecto de luxo!]
terça-feira, outubro 12, 2010
domingo, outubro 10, 2010
isso, também é Paris
aceitação de um estrangeiro nos dias de hoje como um membro que também faz parte de determinada cidade, muitas vezes depende da tolerância e da forte mentalidade de que quando as diferenças são bem exploradas, raramente o resultado é negativo.
em Luanda temos passado por isso, e muitas vezes a afirmação de que o estrangeiro só lá está para tirar o lugar que pertence a um mangolê, é muitas vezes veiculada no ar que respiramos.
actualmente, será que existe uma grande cidade que consegue viver sem os diferentes (entenda-se, os estrangeiros)?
pois bem, nesse ponto, Paris não é excepção nem diferente das grandes cidades e sem fugir a esse facto, a cidade é uma montra de diferenças. há de tudo por cá, martiniquenos casados com colombianas, japoneses que todos os dias apanham o metro, a brasileira que estuda psicologia, um camorenês que é guia turístico ou o angolano que almoça no Kunitora, um restaurante com comida realmente japonesa, e no fundo, não há nada de negativo, no fundo, são pessoas que deixaram o seu espaço para cá vir e numa troca e mistura de hábitos, dar o que é seu e ao mesmo tempo receber um pouco de cada de todos que cá vivem. por exemplo, alguém já imaginou como se deve sentir uma criança muçulmana que nunca tinha visto mulheres com a cara destapadas? um idoso do Benim que na Rue Saint Louis en L´ile vê pela primeira vez na sua vida dois homens a beijaram-se? a francesa que se surpreende com o rapaz moçambicano que no metro cheio de gente, sempre oferece o seu lugar quando surge a sua a sua frente um mais velho. enfim, diferenças que nunca deveriam nos afastar.
apesar de algumas posições de falta de tolerância que a França agora adopta, há nessa cidade muitos pontos positivos para um lugar que todos os dias cruzam-se milhares de pessoas com conceitos de vida totalmente desiguais.