quinta-feira, março 15, 2012

Prefácio

o texto (com acordo ortográfico) que segue abaixo é o prefácio da edição especial desse mês da revista Volta ao Mundo. uma edição escrita por José Luís Peixoto e que em forma de prosa e poesia escreveu a revista como se fossem as paginas de um livro.
uma revista especial para essa que será uma partida especial e com um regresso que de certeza fará de mim uma pessoa diferente dessa que alimenta esse espaço desde 2005.

Só faço a mala à ultima hora. Nos dias anteriores a uma grande viagem, tento resolver uma enorme quantidade de assuntos que, com frequência, estavam por tratar há meses. Tento arrumar tudo, até a consciência, e partir tranquilo. Normalmente consigo fazê-lo. Soluciono burocracias acumuladas, organizo gavetas, escrevo e-mails aborrecidos que andava a adiar e que, durante esse tempo, pareciam crescer em tamanho, em número e em aborrecimento.

Nessa vertigem, não tenho consciência daquilo que me espera à distancia de horas. A mente, ocupada com a obsessão de eliminar problemas antigos, não se liberta a conceber a viagem que começará em breve. Mesmo a fazer a mala, ainda não estou consciente da enorme transformação que está prestes a acontecer. Mantenho uma noção simultaneamente teórica e prática daquilo que planeio: número de dias, calor/frio, necessidades específicas. Assim, escolho roupa e objectos, entalo meias nos espaços livres.

As partidas. Saio do táxi e tudo segue uma rotina: ver no placard eletrónico qual o balcão do check in certo, caminhar a um ritmo certo, pedir para me arranjarem um lugar que não seja no meio, e guardo sempre o bilhete e os documentos no mesmo sítio, e sigo sempre a mesma ordem na máquina dos metais. Tenho sempre um livro para ler. Com ele, espero junto ao portão de embarque. Quando a voz do altifalante avisa que vai começar o embarque, não tenho pressa. Sei que chegaremos todos ao mesmo tempo. Entro no avião com o pé direito, sento-me e, só nesse momento, começo a fantasiar sobre o destino para o qual me dirijo. Faço-o durante toda a viagem.

Miami, Pequim, Moscovo. Antes de levantar o voo, mas ja com o cinto apertado, tinha ideias sobre cada uma dessas cidades. Nesse tempo agora irrepetível, acreditava nessas ideias com firmeza, eram uma realidade que tinha como base leituras, filmes, conversas e uma enorme quantidade de suspeitas que, em ultima análise, refletiam a minha visão do mundo. Só concebia aquilo que era capaz de conceber. A minha experiencia passada era muito importante para traçar essas fronteiras, mas aquilo que eu imaginava tinha noção da necessidade de transcender essa experiência. Não sou capaz de garantir que fosse capaz de fazê-lo. Com base nesse conhecimento, a escolha deste três destinos teve como eixo a vontade de testemunhar três ângulos essenciais da contemporaneidade politica e civilizacional; três pólos de influência mundial que contribuíssem com pistas para o retrato daquilo que é o mundo hoje e, ao mesmo tempo, permitissem intuir um pouco do mundo que aí vem. Tentando erguer o tripé de um álbum de impressões, memorias, imagens, detalhes de instantes.

No que diz respeito ao olhar, impôs-se aquele que está lá e que privilegia a experiência simples dos sentidos. No fundo, para quem foi, o mais fundamental desse tempo, aquilo que efetivamente lhe acrescentou mundo, foi ter ido, ter estado lá realmente, ter olhado em volta. Há muito que se pode aprender em enciclopédias, documentários ou na internet, mas também, há o resto: aquilo que se pode sentir. O primeiro desejo das paginas que se seguem, é captar um pouco dessa aprendizagem dos sentidos. Sendo essa, claro, inseparável daquilo que se conseguiu chegar a saber.

Como uma viagem efetiva, a incluir sempre o tamanho do caminho e da distancia. Como uma volta ao mundo.

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