quarta-feira, março 20, 2013

Francisco José Viegas

O finlandês Mika Waltari (1908-1979) é o autor de O Egípcio, um romance histórico situado no Antigo Egipto (escrito em 1945, foi publicado em Portugal no final na década de 60 pela Bertrand); nele se conta a vida de Sinouhe, medico e espião de faraó Akhenaton. O seu pai, «médico dos pobres», acreditava que as palavras tinham virtudes terapêuticas e, em certas doenças, só elas poderiam obter resultados; numa ocasião, escreveu algumas frases num papiro que depois misturou com vinho num almofariz e deu a ingerir a um paciente – que se curou. Ao longa da historia da leitura, o episódio pode ser evocado sem dificuldades; o «poder curativo da literatura» não deve ser exagerado nem menosprezado. Se não aponta – longe disso – o caminho para felicidade, insinua a sua provável existência. 

Há 25 anos, tratando de um livro inteiramente diferente, Um Mês no Campo, de J. L. Carr (Gradiva) – e adaptado ao cinema por Pat O´Connor, com Colin Firth e Keneth Brannagh, sob o título Longe da Guerra –, propus que certos livros deviam ser vendidos nas farmácias, como se alguns pudessem ser indicados para insónia e outros (por exemplo) para a falta de apetite ou certos estados depressivos, havendo autores ou obras que necessitariam de prescrição médica adequada. 

Em Inglaterra, o Serviço Nacional de Saúde acaba de criar o programa «Books on Prescription», em colaboração com o Arts Council, a Reading Agency e a associação britânica de bibliotecários. A partir de maio, os médicos podem passar uma receita sui generis aos pacientes na área de saúde mental: uma ida à biblioteca da sua área para ler uma seleçao de 30 livros que podem ajudar a tratar «problemas de relacionamento», «distúrbios ao sono», «certos tipos de fobia social», «stresse», «compulsão alimentar» ou «bulimia nervosa», de acordo com uma classificação entretanto estabelecida pela associação de médicos de família do Reino Unido (que também recomenda a participação em comunidades de leitura). Textualmente: «Existe evidencia clínica que demonstra que os livros podem ser tão eficazes como outras formas de terapia – com vantagem de não produzirem efeitos secundários.» A lista, que deve ser disponibilizada nas bibliotecas publicas, incluindo títulos de «autoajuda» mas passa pelos diários de Bridget Jones, de Helen Fielding, ou por títulos de Bill Bryson (Crónicas de Uma Pequena Ilha), Nancy Mitford (Amor Num Clima Frio) e Harper Lee (Mataram a Cotovia). 

O tema garante, pelo menos, discussão – tanto quando a designação «os livros», que pode abranger quase tudo, inclusive coisas que, felizmente, nunca leremos. Mas essa discussão é gratificante e, no fim de contas, «saudável». Que efeitos poder ter a leitura de Anna Karenina ou de O Vermelho e o Negro? Em que pode a leitura de Álvaro Campos ou de Rimboud ajudar-nos a ultrapassar estados depressivos? Quais as consequências da leitura de Borges, Cormac McCarthy, Carver ou J.D. Salinger? Existe um padrão para enquadrar esses efeitos e consequências – e quem assume a responsabilidade por eventuais «distúrbios» causados pela leitura? 

Na melhor das hipóteses regressamos a uma das frases que encerra Rizhome, de Gilles Deleuze e Félix Guattari: num livro há nada a compreender e muito para nos servir. Para que tudo isto tenha sentido, é também necessário alargar o conceito de «medicina preventiva», ou seja, proteger o livro e a leitura até onde for possível e mesmo para lá dessa fronteira. A ideia de «cura pela bibliografia» é tão feliz que não se pode perder a oportunidade de levar os leitores a identificarem os livros que, em circunstâncias determinadas, podiam ter sido comprados numa farmácia – com prescrição médica ou ao seu arrepio, experimentando uma droga tolerada.

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