Deram-lhe aquela alcunha em menino, j� ningu�m recorda o motivo: Fim-do-Mundo. Depois que cresceu ficou apenas Mundo, o Mundo, nome que se diria feito ? medida para um sujeito como ele, com quase dois metros de altura, cento e vinte e cinco quilos de peso, e uma gargalhada feroz, com a qual aterrorizava at� os mais precavidos. Conta-se que numa tarde de farra, na sequ?ncia de uma aposta idiota, entrou num avi�rio e matou trinta e tal galinhas com um �nico grito. Murmura-se tamb�m, pelos corredores do Minist�rio, pelos bares da Ilha de Luanda, inclusive em algumas discotecas angolanas de Lisboa, que um dos seus colegas teria gravado, sem que ele o soubesse, uma das famosas gargalhadas, vendendo-a depois aos americanos, que utilizam agora em Guant�namo , ampliada e repetida vezes sem conta, para amaciar os prisioneiros e os fazer falar: Posso imaginar o Presidente George Bush a defender no Senado os m�todos pouco ortodoxos dos seus generais:
?Sujeitar um terrorista a gargalhadas, ainda que durante uma noite inteira, ou mesmo duas, n?o pode ser considerada uma forma de tortura ? pode??
Mundo, agente do Minist�rio da Informa�ao e Seguran�a do Estado, atravessou a vida como um camiao desgovernado, quase sempre em contramao, ate embater de frente, aos quarenta e dois anos, depois de um farto funje de s�bado, com um general ainda mais alto, mais pesado, e mais desvairado do que ele. Discutiram, amea�aram-se, Mundo lan�ou um tremendo berro, destinado a paralisar o outro, mas o que aconteceu foi o inverso, o cora�ao parou-lhe naquele exacto instante e ele caiu no chao, com estrondo, como uma montanha desamparada. Foi a enterrar num intenso caixao, tao espa�oso na verdade quanto muitos apartamentos modernos, importado de Nova Iorque especialmente para o efeito. Os amigos passaram a referir-se a ele como o Findo Mundo. Nao deixou vi�va nem filhos, apenas um papagaio muito velho, rabugento, com �speras penas cinzentas, chamado Solil�quio. O papagaio ficou meia d�zia de meses com uma das suas varias namoradas, a qual finalmente o vendeu a um amigo, e aquele a outro, at� ir parar as maos de um conhecido jornalista ligado aos meios da oposi�ao. Aconteceu entao que o dito jornalista, indiv�duo de poucas letras, � certo, mas de muitas palavras, contradi�ao nao rara e raramente conflituosa, num pa�s onde a contradi�ao se tornou ao longos dos �ltimos trinta anos um apurado jogo de sociedade, aconteceu entao dizia eu, que o dito jornalista desatou a publicar uma s�rie de reportagens desagrad�veis, expondo a intimidade, os neg�cios e a contabilidade de v�rios pol�ticos, empres�rios, e militares pr�ximos do poder. Os homens da Seguran�a do Estado andavam agitados ? quem seria o misterioso garganta funda que estaria a vazar a informa�ao? Um dos agentes, um homem gordo, af�vel chamado Almiro, que fora muito amigo do Findo Mundo, lembrou-se de Solil�quio:
?O papagaio do Findo Mundo! S� pode ser o papagaio, ele ouvia todas as nossas conversas enquanto jog�vamos ?s cartas...?
?Um papagaio? Absurdo...?
?N?o menospreze o absurdo, coronel. Neste pais somos todos filhos do absurdo...?
Logo ali ficou decidido que o mesmo Almiro deveria infiltrar-se na casa do jornalista, a horas mortas, com a missao de sequestrar Solil�quio, e, confirmando-se ser ele o garganta funda, silencia-lo para sempre. Almiro foi. Raptou o papagaio, levou-o para uma oficina mec�nica, abandonada., onde j�, em diversas ocasioes, procedera a interrogat�rios nao oficiais, e esperou, paciente, que o animal se decidisse a falar. Nao teve de esperar muito tempo. Solil�quio confirmou todas as suspeitas, repetindo frases inteiras que escutara aos agentes, e misturando ainda rumores e cal�nias da sua pr�pria lavra.
?Nao consegui matar?, confidenciou-me Almiro, meses depois, quando o conheci por acaso, num restaurante angolano, em Lisboa:
?Em primeiro lugar era como se estivesse a ouvir o pobre Mundo a falar. Por outro lado, sabe?, nao sou capaz de matar nada que tenha penas. Acho que os p�ssaros sao da fam�lia dos anjos.?
Meteu-se num aviao, com Solil�quio escondido dentro de uma cesto, e fugiu para Lisboa. N?o tem medo que o descubram. N?o tem medo de nada ? enfim, de quase nada:
?A gargalhada do Findo Mundo! Solil�quio imita-a quase na perfei�ao, digo-lhe meu parente, aquilo, a meia-noite, assusta qualquer mortal!?
Por: Jos� Eduardo Agualusa
Retirado da revista P�blica, suplemento do Jornal P�blico
?Sujeitar um terrorista a gargalhadas, ainda que durante uma noite inteira, ou mesmo duas, n?o pode ser considerada uma forma de tortura ? pode??
Mundo, agente do Minist�rio da Informa�ao e Seguran�a do Estado, atravessou a vida como um camiao desgovernado, quase sempre em contramao, ate embater de frente, aos quarenta e dois anos, depois de um farto funje de s�bado, com um general ainda mais alto, mais pesado, e mais desvairado do que ele. Discutiram, amea�aram-se, Mundo lan�ou um tremendo berro, destinado a paralisar o outro, mas o que aconteceu foi o inverso, o cora�ao parou-lhe naquele exacto instante e ele caiu no chao, com estrondo, como uma montanha desamparada. Foi a enterrar num intenso caixao, tao espa�oso na verdade quanto muitos apartamentos modernos, importado de Nova Iorque especialmente para o efeito. Os amigos passaram a referir-se a ele como o Findo Mundo. Nao deixou vi�va nem filhos, apenas um papagaio muito velho, rabugento, com �speras penas cinzentas, chamado Solil�quio. O papagaio ficou meia d�zia de meses com uma das suas varias namoradas, a qual finalmente o vendeu a um amigo, e aquele a outro, at� ir parar as maos de um conhecido jornalista ligado aos meios da oposi�ao. Aconteceu entao que o dito jornalista, indiv�duo de poucas letras, � certo, mas de muitas palavras, contradi�ao nao rara e raramente conflituosa, num pa�s onde a contradi�ao se tornou ao longos dos �ltimos trinta anos um apurado jogo de sociedade, aconteceu entao dizia eu, que o dito jornalista desatou a publicar uma s�rie de reportagens desagrad�veis, expondo a intimidade, os neg�cios e a contabilidade de v�rios pol�ticos, empres�rios, e militares pr�ximos do poder. Os homens da Seguran�a do Estado andavam agitados ? quem seria o misterioso garganta funda que estaria a vazar a informa�ao? Um dos agentes, um homem gordo, af�vel chamado Almiro, que fora muito amigo do Findo Mundo, lembrou-se de Solil�quio:
?O papagaio do Findo Mundo! S� pode ser o papagaio, ele ouvia todas as nossas conversas enquanto jog�vamos ?s cartas...?
?Um papagaio? Absurdo...?
?N?o menospreze o absurdo, coronel. Neste pais somos todos filhos do absurdo...?
Logo ali ficou decidido que o mesmo Almiro deveria infiltrar-se na casa do jornalista, a horas mortas, com a missao de sequestrar Solil�quio, e, confirmando-se ser ele o garganta funda, silencia-lo para sempre. Almiro foi. Raptou o papagaio, levou-o para uma oficina mec�nica, abandonada., onde j�, em diversas ocasioes, procedera a interrogat�rios nao oficiais, e esperou, paciente, que o animal se decidisse a falar. Nao teve de esperar muito tempo. Solil�quio confirmou todas as suspeitas, repetindo frases inteiras que escutara aos agentes, e misturando ainda rumores e cal�nias da sua pr�pria lavra.
?Nao consegui matar?, confidenciou-me Almiro, meses depois, quando o conheci por acaso, num restaurante angolano, em Lisboa:
?Em primeiro lugar era como se estivesse a ouvir o pobre Mundo a falar. Por outro lado, sabe?, nao sou capaz de matar nada que tenha penas. Acho que os p�ssaros sao da fam�lia dos anjos.?
Meteu-se num aviao, com Solil�quio escondido dentro de uma cesto, e fugiu para Lisboa. N?o tem medo que o descubram. N?o tem medo de nada ? enfim, de quase nada:
?A gargalhada do Findo Mundo! Solil�quio imita-a quase na perfei�ao, digo-lhe meu parente, aquilo, a meia-noite, assusta qualquer mortal!?
Por: Jos� Eduardo Agualusa
Retirado da revista P�blica, suplemento do Jornal P�blico
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