quinta-feira, novembro 22, 2012

Visto e revisto

Há países para onde não se pode viajar se o passaporte não tiver pelo menos duas páginas inteiras limpas. Essa verificação é feita pelo funcionário do check in e, se o passaporte não tiver as ditas páginas disponíveis, não se pode embarcar e a mala não chega a deslizar no tapete rolante que a faz desaparecer até, milhares de quilómetros e de milhas aéreas mais tarde, voltar a aparecer noutro tapete rolante, às voltas. 

O motivo para essa preocupação tem que ver com a eventualidade de, uma vez lá, ser possível viajar entre os países vizinhos e, dependendo do tamanho dos carimbos, facilmente se preencher duas ou mais páginas. Esse é o caso, por exemplo, da África do Sul. Onde pude comprovar a necessidade desse detalhe burocrático depois de ter passado pelas fronteiras com a Namíbia, o Botswana e Moçambique. Após essa experiência, aquilo que há mais a lamentar não é o papel, são as horas em que se podia estar a fazer alguma coisa que talvez nunca mais se volte a ter oportunidade de fazer na vida. 

Respeito os sentimentos que se pode ter por objetos, como é o caso de pequenos cadernos de capa avermelhada, mas não sou capaz de senti-los completamente. Conheço muitas pessoas que vão à polícia dizer que o seu passaporte foi roubado apenas para, na hora de fazerem um novo, não terem de deixar o antigo. Não é esse o meu caso. Custa-me pouco entregar um passaporte cheio de carimbos e vincado por viagens e viagens no bolso de trás das calças. Não reconheço naquelas páginas mal carimbadas o melhor das viagens que fiz. 

Consigo perceber que um passaporte cheio de carimbos se assemelha bastante a uma caderneta de cromos. Respeito os sentimentos que se pode por cadernetas, sobretudo quando já se conseguiu aquele cromo mais difícil. No entanto, para mim, recordam-me muito mais os momentos de tensão em que fiquei diante de um polícia, sentando numa cadeira alta, a olhar muito serio para mim, a fazer-me perguntas com mau tom (O que é que vem fazer ao País? Onde fica hospedado? Quando é a sua viagem de regresso?) e carimbar o passaporte contrariado, atirando-o para cima do balcão, sem olhar para mim, sem agradecer e sem se despedir. Os estudantes licenciados em Direito de certeza que haveriam de ter muito a dizer sobre este assunto. Seria interessante ouvir as suas razões, no entanto, acabei de chegar a minutos da Embaixada da Índia e os meus instintos dizem-me que todo a gente teria a ganhar se não existissem esse papéis, se não fosse preciso desperdiçar estas horas à espera que chamem o número do talão. Considerando o que se paga por cada visto, imagino que seja uma atividade que se financie a si própria e que dê algum lucro, mas acredito a senhora que passa os dias a responder às mesmas perguntas atrás de um vidro preferisse dedicar a sua vida a outra atividade. Talvez algo ao ar livre. 

Se houver algum problema, o que esperam resolver com duas fotografias tipo passe? A única vantagem, parece-me, é que, assim, obrigam-nos a descobrir ruas do Restelo onde talvez nunca entrássemos. Descubro-as com o GPS, tal e qual como se estivesse perdido na savana africana. Afinal, talvez essas voltas também façam parte. Talvez a viagem já tenha começado. 

 José Luís Peixoto, escreve com acordo ortográfico

1 comentário:

Naicoco disse...

Gosto tanto do Luís Peixoto..tantomente, como se diz em Luanda!:)

E cada vez mais, gosto mais de ler o atelier..;)

Cheers

Naicoco