entrei, sentei-me e abri a pequena embalagem que encontrei por cima da mesa. trazia um embrulho com um bilhetinho:
quando o vi na montra, pensei logo em ti!
Z.
os dois primeiros capítulos já eram. logo, a noite será em claro.
...
Segui o olhar de Kianda e vi uma mulher a cair do céu. Caiu – veio caindo, nua, negra, de braços abertos – quase ao mesmo tempo que o raio.
O raio fez explodir o imbondeiro. Um meteorologista explicou-me, há muitos anos, que os raios podem fazer explodir as árvores ao provocarem a súbita ebulição da seiva. A mulher afundou-se entre o capim alto, não muito longe do carro. Aproximei-me. O corpo estava enterrado na alma. Tinha a cabeça deitada para trás. Reconheci aqueles olhos abertos, muito negros, ainda cheios de luz. Recuei aterrorizado. Não deixei que Kianda a visse:
- Vamos!
- Vamos?! E ela?
- Ela está morta, amor! Não se incomoda queres chamar a policia?
- Não, não! a policia não. Não quero chamar ninguém. Sabes muitíssimo bem que não nos podem ver juntos.
Abracei-a. Kianda tremia. Levei-a para o carro, sentei-a no lugar do morto, e conduzi em silêncio de regresso a Luanda. Quando chegámos ainda a noite não descera sobre a cidade. Estacionei o carro a dois quarteirões do prédio dela. Debrucei-me para a beijar. Kianda afastou o rosto:
- Não! nunca mais.
Saí. Ela tomou o meu lugar, colocou o carro em andamento e foi-se embora. Mandei parar um táxi. Durante muitos anos não houve em Luanda táxis individuais; havia somente táxis colectivos, os candongueiros, destinados a servir o povo.
[O Povo, ou Eles, é como em Angola nós, os ricos, ou os quase ricos, designamos os que nada têm. Os que nada têm são a esmagadora maioria dos habitantes deste país.]
O motorista era um congolês obeso. A pele do rosto, muito lisa, brilhava como um espelho à luz acobreada do final do dia. Abriu para mim um sorriso enorme:
- Para onde vamos, paizinho?
- Não sei. – Confessei numa voz sem cor. O Medo não me deixava pensar. – Para qualquer lado.
O homem voltou a sorrir:
- Não se preocupe. Eu levo-o lá.
Meia hora depois deixou-me à porta de um pequeno bar. Reparei no néon a pulsar sobre a porta – “O Orgulho Grego”. O sorriso do taxista tinha agora o tamanho do mundo:
- Entre e pergunte pela Mãe Mocinha. Ela saberá dizer-lhe para onde ir.
Nunca se engana.