segunda-feira, junho 01, 2009

crónica ficcional

Aterrámos numa pequena cidade alemã. Pequena, mas feia. Feia, mas desinteressante. Desinteressante, mas desagradável. De qualquer maneira, no meio do tédio havia uma guia baixinha, pouco vistosa, muito tímida, de óculos, um pouco corcunda, mas entusiasmada.

Avançámos para a pequena carrinha que levava a comitiva. Ainda antes de subirmos para a camioneta, a guia de óculos graduados e sorriso, recebeu-nos simpaticamente e, mostrando o seu profissionalismo, uns segundos depois de se apresentar estava já a falar do século XVI. Falava baixinho, mas falava.

Na pequena carrinha, em menos de dois minutos, as conversas paralelas instalaram-se e subiram de volume.

Todos ignoravam olimpicamente a guia excepto o arquitecto, companheiro de comitiva que estava à minha frente, e que mantinha, aparentemente, a atenção. De trinta em trinta segundos dizia que sim à guia, com a cabeça.

A certa altura, houve claramente uma quebra psicológica na guia. Estava a falar do século XVII para uma comitiva de vinte e uma pessoas e vinte falavam entre si sobre tudo, menos sobre a cidade que se passeavam. O facto de a delicadeza do arquitecto fazer com que a sua cabeça, de tempos a tempos, se mexesse, não era suficiente para uma profissional. Estava a passar por um vexame.

A princípio, a guia, tentando reagir à adversidade, falou mais alto, mas tal só teve como resultado o aumento das conversas paralelas.

Depois, ela quebrou claramente a relação que mantivera até ali com o seu profissionalismo. Algo ultrapassara o mínimo de decência civilizacional que uma guia alemã exige. Começou, pois, a dar informações erradas.

A guia dava informações absurdas, vintes elementos da comitiva não a escutavam e apenas um, por delicadeza, mantinha a sua cabeça dizendo que sim, a intervalos quase exactos.

A guia começou então a insultar. Com um tom de voz exaltado apontava para os elementos da comitiva e chamava-lhes nomes, alguns em alemão. Mas era como se nada se tivesse alterado: o arquitecto dizia que sim com a cabeça e os outros falavam de outros assuntos.

Depois dos insultos, a guia manteve-se uns segundos em silêncio e só depois, ao ver que tudo continuava na mesma, pregou um enorme estalo no elemento da comitiva que estava no banco da frente, a falar para o colega do lado.

A guia retomou as explicações por um minuto, minuto e meio, mas de facto nada se alterara. O ruído da comitiva era ensurdecedor.

Foi então que a guia, puxando surpreendentemente de uma navalha, e sem pensar certamente nas consequências, a espetou no coração do elemento da comitiva que estava na primeira fila. O corpo caiu para frente, primeiro batendo num pequeno ferro, depois estatelando-se no chão com o estrondo, estrondo esse que diluiu por completo nas vozes alheadas dos elementos da comitiva.

Tudo prosseguiu como até ali. O elemento da comitiva que havia acabado de perder o seu interlocutor, virou-se para os seus dois companheiros de trás e rapidamente entrou nessa outra conversa que há muito decorria.

Algo, porém, estava já em marcha e era imparável. A guia, depois de endireitar os seus óculos, espetou a navalha no segundo elemento da comitiva; depois no terceiro; depois, no quarto, no quinto.

Apesar do massacre, os elementos sobreviventes da comitiva continuavam embrenhados nas suas conversas particulares. O arquitecto, a cada punhalada, dizia que sim com a cabeça.

O massacre prosseguiu depois seguindo a ordem pela qual os elementos da comitiva estavam sentados.

Apesar do sangue, o condutor, lá à frente, mantinha-se imperturbável. Com profissionalismo, não cometia a indelicadeza de se intrometer no que lá atrás ia sucedendo. Acelerou mesmo um pouco, pois a hora que os elementos da comitiva haviam dado como limite para o regresso aproximava-se.

A guia, com os óculos já tortos em relação à cara, prosseguia, entretanto, com uma meticulosa impiedade. O arquitecto ainda teve tempo para dizer uma última vez que sim com a cabeça, mas a guia não o poupou.

Toda a comitiva jazia já no chão, quando o condutor, que passara por todos os pontos previstos, parou exactamente no sítio onde a visita turística começara. Estava terminada. E à hora prevista.

A guia retomara agora o seu posto, no banco da frente, e falava sobre a estrutura piramidal dos azulejos, uma das muitas maravilhas da cidade de Osnastruck.

Gonçalo M. Tavares, Revista Visão

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