A camioneta, que avança por cima da fronteira da faixa de Gaza no sentido dos ponteiros do relógio, leva músicos que acertaram os ouvidos entre si e decidiram, embora não explicitamente, que os ouvidos eram mais importantes do que os olhos. E enquanto tocam a camioneta avança.
Os vidros que tudo deixam ver nos dois sentidos são à prova de bala. Deixam ver, mas não deixam matar, facto que o maestro agradece.
No interior da camioneta a orquestra, composta por músicos palestinianos e israelitas, toca, enquanto no exterior há tiros e explosões. Lá dentro não se ouvem os tiros, lá fora não se ouve a música.
Para alem da orquestra, a camioneta envidraçada transporta um ciclista inútil. Um ciclista que pedala no mesmo sítio e que se ilude com o esforço dos pés, imaginando que é ele que faz mover a camioneta quando afinal é o motor desta que tudo faz avançar ao longo da fronteira da faixa de Gaza.
Mais à frente, porém, uma patrulha de soldados exige a paragem da camioneta e o condutor nada pode fazer senão obedecer. A camioneta pára e com ela a música.
Mas no momento da travagem algo de inesperado ocorre. O ciclista inútil, que pedalara durante horas no mesmo sítio, acabara de desencravar as rodas do mecanismo onde haviam colocado e, de nádegas firmes sobre uma bicicleta que recuperou os seus movimentos normais, pedala já – fora da camioneta – por cima da linha da fronteira da faixa de Gaza (e imaginemos que a fronteira é mesmo uma linha, como a que um lápis deixa numa folha). Saiu a tal velocidade que nenhuma patrulha o conseguiu travar.
Eis, pois, o ciclista em pleno esforço, imaginando-se numa competição importante, na volta em França em bicicleta, por exemplo, pedalando com velocidade e rigor. Velocidade que permite escapar às balas e rigor que faz com que as duas rodas da bicicleta jamais se afastem da linha a lápis que marca a fronteira daquele rectângulo, a faixa de Gaza: rectângulo com cerca de 45 km de comprimento e 8 km de largura.
Está totalmente concentrado, com os olhos a anularem dois outros sentidos bem importantes do ser humano – o sentido da audição e o sentido do medo.
Naqueles instantes, para o ciclista só há um elemento no mundo: a linha de fronteira. De tal forma que até o próprio rectângulo que constitui a faixa de Gaza desaparece da mente concentrada.
É claro para ele agora que aquela corrida em cima da linha de fronteira não é uma corrida normal de bicicleta. De facto, ele percebe que está em cima de uma linha e que só a linha existe. Avança, isso mesmo, como um funâmbulo em cima de uma corda – pois para ele ao lado dessa linha não há território sólido, mas sim apenas nada e coisa nenhuma, um abismo. O mais pequeno desvio de uma das rodas da bicicleta em relação à linha de fronteira da faixa de Gaza terá por consequência uma queda fatal. Eis o que ele imagina.
Só pois uma enorme mestria na condução da bicicleta evita uma tragédia. Ele não olha para os lados, os lados não existem. Fixa-se apenas na linha que tem à sua frente e que tem apenas largura para as rodas da bicicleta.
Atravessou já um comprimento inteiro (45km), uma largura (8km), depois do segundo comprimento (45km) e entrou agora, a grande velocidade, no último lado deste rectângulo que só tem perímetro, fronteira; rectângulo, enfim, que perdeu tanto o interior como o exterior.
De vários lados disparam tentado travar o percurso do ciclista, mas o certo é que nenhuma bala chega ao destino.
o ciclista já vê a meta, aproximar-se a grande velocidade do canto de onde partiu. A camioneta desapareceu e o ciclista está apenas a dois metros de percorrer por completo o perímetro da faixa de Gaza.
Para conseguir manter-se em cima daquela linha ténue, este funâmbulo sabe que deve virar a esquerda, passando da largura para o comprimento da faixa de Gaza, porém a sua bicicleta atingiu já uma velocidade tal que ele percebe que não conseguira parar.
E foi então nesse segundo que tudo se passou. Terá talvez recuperado, de súbito, a audição pois pela primeira vez ouviu de forma clara o som de uma bala. E depois não sabe bem o que aconteceu, sabe sim que não mudou de direcção e não parou de pedalar. Terá assim saído do perímetro da fronteira da faixa de Gaza, avançando para esse espaço vazio – funâmbulo de tal forma hábil que dispensa já a corda ou o fio debaixo de si – e por isso naquele momento o ciclista não percebe se já está morto ou, se no ar, magnificamente pedala em direcção ao violento pôr de sol.
Gonçalo M. Tavares, na revista Visão
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