sexta-feira, dezembro 24, 2010

feliz natal para todos que por cá ainda vão passando. obrigado

Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Morais se tinha medo da morte.

O poeta respondeu com um sorriso:

- Não, minha filha. Tenho saudades da vida.

De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo. Estou certo que o meu pai anda chateadíssimo no cemitério, sem livros, sem música, sem oportunidades para ser desagradável. O meu avô, tão diferente do filho, já deve ter feito montes de amigos por lá, todos a comerem percebes à volta de uma mesa grande. E o meu tio Eloy joga às cartas com os outros, a sorrir de satisfação quando lhe saem naipes bons. Costumava inchar na cadeira, a olhar para eles, repetindo

- Muito bem, senhores oficiais

da mesma maneira que, se as coisas corriam mal, se lamentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim

e vejo-o daqui, sem uma prega, elegantíssimo. A minha tia Madalena lê livros grossos, a minha tia Bia ensina piano e eu sinto medo de não haver papel, nem caneta, nem amigos, nem mulheres. Mas, voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá? Da minha filha Isabel ao levá-la a um museu para lhe encher de amor pela beleza os tenros neurónios:

- Estás a gostar?

- Acho um bocado aborrecente

e não tive coragem de dizer que também acho os museus um bocado aborrecentes. Não ligava muito aos quadros, ou antes não ligava um pito aos quadros mas, na época de eu criança, havia escarradores cromados, a cada dez telas, que me interessavam muitíssimo. O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e, não estou a brincar, envergonho-me disso. No transporte para o liceu sempre admirei os cavalheiros que tiravam um lenço muito bem dobrado da algibeira, o abriam numa lentidão preciosa, puxavam a alma dos pulmões, depositavam-na no lenço num gorgolejo de ralo, competente, profundo, examinavam a alma com satisfação, tornavam a dobrar o lenço e faziam o resto do trajecto com ela nas calças. Talvez seja por isso que nem lenço uso: quando me acho fungoso luto comigo mesmo para não limpar o nariz na manga: a maior parte das vezes consigo. Vou ter saudades daqueles que se assoam com dignidade e estrondo e dos outros, mais comuns, detentores de um poder de síntese que, desgraçadamente, me falta. Passa uma rapariga e eles, logo

- És muita boa

numa concisão admirável, a acotevelarem um sócio distraído

- Viste?

O sócio já só apanha a rapariga ao longe mas concorda por solidariedade

- Chega o verão e descascam-se logo

e o do poder de síntese remata

- Todas umas putas

que é um ponto final que não admite acrescentos, ei-las catalogadas em definitivo, de modo que se passa aos méritos da cerveja preta que, além de acabar com a sede, é óptima para tirar nódoas, seja na camisa, seja no estômago

- Até limpam as úlceras

limpam as úlceras e amortecem o presunto:

- Se as pessoas mamassem uma preta a meio da tarde ninguém adoecia.

Segue-se a inspecção da sola do sapato

- Olha-me para a porcaria deste buraco aqui

e um discurso acerca das fragilidades e misérias do cabedal. Terei saudades disto? Do senhor da mercearia ao pé de mim vou ter de certeza. Está sempre sozinho na loja, atrás do balcão, educadíssimo. Se lhe comprar um maço de cigarros e disser

- Obrigado

responde de imediato

- Obrigado somos nós

num tom papal, que me leva a imaginá-lo cercado de criaturas invisíveis para mim mas óbvias para ele, uma multidão de espectros sobre os quais reina com benevolência. Tem sobrancelhas grossíssimas que não vão inteiramente com os seus gestos fidalgos. Nunca vi ninguém entrar na mercearia a não ser eu. Mentira: uma ocasião estava lá uma velhota que comprou dois pêssegos, a contar o dinheiro como se estivesse a despedir-se para sempre de um filho único. Lembro-me que fitou as moedas, até elas se sumirem na gaveta, numa ternura que me rasgou ao meio o coração. Depois sumiu-se numa portinha ao lado, com uma pantufa no pé esquerdo e uma bota no direito. O degrau da portinha levou-lhe um quarto de hora a escalar. O senhor da mercearia, esquecido do

- Obrigado somos nós

abriu-me os horizontes

- É a dona Esperança que já foi muito rica.

Foi muito rica e agora um pêssego, uma sopinha talvez, os restos da riqueza no prego. Terei saudades disto, também? Para citar a Isabel a vida, de tempos a tempos, é aborrecente. Será que, há séculos, a dona Esperança muito boa? Será que o marido cuspia em condições? É pouco provável porque o marido, segundo o senhor da mercearia, doutor.

- Doutor de tribunais

especificou ele com admiração

- Doutor de tribunais

escutei eu já na rua. Penso que se o meu tio Eloy visse aquilo comentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim.

Eu também não, tio, eu também não. E, já agora, quando Vinicius de Morais se referia a saudades da vida em que vida pensava?

António Lobo Antunes, revista Visão

quarta-feira, dezembro 22, 2010

segunda-feira, dezembro 13, 2010

descobertas

Revista Pessoa

o homem usava um desses olhares esguios, espécie de mirada tangencial que se direcciona mais para um tempo do que um lugar, e falou tão baixo que tive que diminuir o tom da minha respiração para poder ouvi-lo: “vai uma palavrinha?

finalmente entendi, e busquei – com o olhar – as suas mãos calmas, julgando que nelas encontraria alguma explicação para aquela oferta, mas eram simplesmente as mãos nuas e limpas de um homem tranquilo, vestido de um modo obsoleto mas discreto, usando um fato completo de cor cinzenta que no brasil, como se sabe, atende pelo nome de “terno”.

“desculpe, não entendo”, balbuciei. o homem convidou-me a sentar num simpático banco de jardim, num dos lugares mais frescos do mundo, o chamado jardim botânico, na simpática (alguns dizem “maravilhosa”) cidade do rio de janeiro.

pergunto se você está interessado em comprar uma palavra muito especial?

e sim, eu começava a entender o episódio, não no sentido concreto que seguisse uma qualquer lógica das transacções comerciais como as conhecemos no mundo moderno, mas entrando já no campo das negociações metafísicas, género de trocas humanas que lidam com o inexplicável e em cujo âmbito a pessoa deve decidir se quer ou não entrar.

“de que palavra se trata?”, procurei saber. “há informações que só se conseguem mediante a troca de um certo valor”, o homem anunciou tranquila mas seriamente. “e de quanto estamos a falar?”, procurei a minha carteira com medo que ela já lá não estivesse. mas estava. não se tratava, de modo algum, de um burlador vulgar, ou de um esquema combinado em grupo ou com mais um compincha, para me sacarem a moeda “real”. era um esquema, sim, mas bem mais profundo. “quanto acha que vale uma palavra inventada e explicada por guimarães rosa?” – o homem viu que os meus olhos brilharam e a partir daí eu estava, por assim dizer, caçado.

desembolsei a quantia acordada, que não foi pouca, antes mesmo de saber que vocábulo era. o homem discursava lentamente. depois de ter guardado o dinheiro, fumava com estilo, mirava as árvores, contemplava os pássaros e, mesmo de olhos abertos, era nítido que viajava para uma memória comprida como um rio e sólida como uma ponte de madeira que formasse o cais para aonde me convidava a viajar também.

o mestre guimarães rosa ofereceu a palavra ao meu falecido pai, mas eu estava presente, e posso garantir-lhe que sou herdeiro único – tive que acreditar. o chá havia sido servido, guimarães rosa fumava, papai não gostava de fumar, mas na presença do mestre, permitia..., a sala era invadida por cheiros de chá, café, flores e o perfume do fim da tarde. as crianças, desde que silenciosas, eram autorizadas a permanecer durante os serões. e guimarães falou, explicou, deu acesso à criação. que era uma palavra que ainda não havia e fazia falta; que era palavra de retenção – mas redonda, que era assim um modo de dizer que fazia falta na nossa língua, dita portuguesa.

que palavra, afinal?” – quis saber, tentando entender se o preço se justificava. o homem, calmo, alisando com a mão a prata do seu lindo relógio de bolso, levantou-se, respirando fundo. “veja, as palavras não têm preço. custam o que queremos dar por elas...” levantei-me também: “ou custam o que decidimos que valem no momento de as vendermos... confesso que é a primeira vez que compro uma palavra.”

o olhar do homem alterou-se, tornou-se fresco. veio da viagem e regressou ao momento presente, menos intenso, porém ainda em suspensão. “privácia”, disse.

para atenuar o meu silêncio e encantamento, acrescentou: “guimarães rosa achava que essa palavra nos estava em falta. não é privacidade; é privácia. vem do inglês. como em privacy. e foi assim...

voltei a sentar-me, vendo-o partir, contando o dinheiro e guardando-o novamente no bolso. de trás, confesso, não parecia o mesmo homem. talvez mais alto, talvez mais denso. pareceu-me ouvir a promessa de que nos voltaríamos a ver. no ar, deixava um conselho: “a mesma palavra não pode ser vendida duas vezes.” nem outra coisa me tinha ocorrido. guardaria a palavra na minha colecção privada de objectos internos.

tive apenas o leve presságio que talvez guimarães rosa ficasse magoado com o episódio. “ou talvez não.”

Ondjaki . Angola . Vai uma palavrinha...?

sexta-feira, dezembro 10, 2010

quinta-feira, dezembro 09, 2010

quarta-feira, dezembro 08, 2010

um convite aos de cá e aos de lá

para acompanhar via internet, televisão, jornal, rádio ou por amigos que lá vão estar.

segunda-feira, novembro 29, 2010

sábado, novembro 13, 2010

para ti, que nunca me lês!

estranho momento que agora passo, aqui sentado neste quarto que vezes sem conta vazaste porta a dentro apenas para saber se já tinha comido ou para tirar alguma duvida de informática sempre que decidias não escrever a mão!

estranho momento que agora passo, apercebo-me que nunca tinha escrito para ti, aqui desse quarto, o mesmo que vezes sem conta reclamaste da desarrumação, dos livros e revistas que se acumulavam no chão (ainda cá estão) ou das fotos que tapam as cores da parede.

estranho momento que agora passo, sinto que nunca te disse a felicidade que me trazias sempre que cá entravas... na verdade, sinto mesmo que o tempo que passamos juntos foi insuficiente... sinto que merecíamos mais... sinto que deverias estar por cá... enfim, sinto mesmo que todo esse espaço ficou vazio.

um convite aos de cá

sexta-feira, novembro 12, 2010

quarta-feira, novembro 03, 2010

segunda-feira, novembro 01, 2010

o post que se segue, é um presente a todos os “ausentes” que se mantêm presente no meu mundo

em criança e quem sabe ainda na barriga, a minha geração presenciou sem muito percepção musical, o fenómeno Kassav. os Kassav são uma banda da Martinica que cantam zouk, por vezes em crioulo por vezes em francês, e que no final da década de 80 deram em Luanda o primeiro grande show de estádio que o país viu. naquela altura em que nas festas de quintal dançava-se ao som de músicas de Juan Luis Guerra e outras ketas que agora fogem-me da memoria, eram os Kassav a banda mais popular em Angola.

a Jocelyne, que a par do Jean-Philippe Marthély, é volcalista da banda, sempre foi linda assim... e não duvido que naquela altura, era ela a mulher dos sonhos de muitos jovens.

quase vinte anos depois, a banda que até hoje faz sucesso nas farras dos bairros de todo o país, regressou a mesma cidade e ao mesmo estádio, e com todo o mérito de quem sabe o que faz, simplesmente arrasaram!

a chuva ainda tentou deter-lhes, eu próprio e com alguma desconfiança só saí de casa quando a rádio informava que estavam na cidadela quase 30.000 pessoas, apesar dos pingos que vinham lá do céu. quando cheguei ao show, já o Yuri da Cunha terminava a sua apresentação, rimos com o humorista Calado Show, mas a noite era mesmo da banda de Zouk La Se Sel Medikaman Nou Ni (que em criança a gente gritava, Zouk Zouk, nunca mais te vi, ta se achar!).

Angola já passou por muitas coisas desagradáveis, e hoje, de certeza que o país está melhor que na altura em que o zouk rebentou, mas na noite do show, havia no estádio da cidadela o sabor da saudade... um passado que apesar de todos os problemas existentes, deu-nos também algumas alegrias.







sexta-feira, outubro 29, 2010

sexta-feira, outubro 22, 2010

quarta-feira, outubro 20, 2010

domingo, outubro 17, 2010

hoje, é um bom dia para assumir 44

cá estou eu sentada e com tempo para dispersar. Entre utopias e realidades procuro sempre encontrar no pensamento o paraíso. onde o tesouro somos nós e o mapa esconde-se em nós. nada complicado de decifrar se acalmarmos o desassossego que invade a alma. passamos muito tempo do nosso tempo à espera de alguma coisa, ou de coisas em particular para compensar um vazio. esperamos sempre que os outros gostem de nós quando nem sequer sabemos se verdadeiramente nos gostamos. esperamos sempre um gostar fácil e rápido. vivemos em dúvida duvidando do que não queremos e com isso calamos sempre aquela vozinha interior que nos incomoda, e prefere-se o silêncio. gosto de explorar essas vozes, gosto de ouvir o que elas tem para me dizer, quem sabe me dizem algo que eu nem estou a ver. gosto de assumir sentimentos porque gosto de viver e sobreviver. não gosto duma alma calada , isso é morrer. não tenho tempo para ter pena de mim nem tempo para me enganar, nem para investir no pior de nós - o ego. chamo-lhe o cancro da personalidade, porque pouco a pouco torna-se uma identidade. tenho tempo sim de procurar ser feliz, encontrar pequenos paraísos e seguir para outros paraísos. falo de coisas alcançáveis, possíveis. falo do paraíso da alma. aquele que nos permite existir com dignidade, que nos permite sorrir, que nos permite uma história de amor. que nos permite ser quem somos, que nos permite a emotividade e os afectos. sou uma Mulher emotiva e tenho que dar e receber afecto. um beijo ou um abraço ou um beijo e um abraço de quem gostamos é um pequeno paraíso. Como vêem o paraíso não é uma utopia, ele existe de facto e está em nós. com isto apetece-me ser feliz! apetece-me ser feliz com o Amor que tenho! apetece-me estar feliz quando danço. apetece-me ficar contente quando sorrio. apetece-me ser generosa. apetece-me estar em harmonia, feliz com a nostalgia. apetece-me ser feliz com o Outono, sou feliz com o sonho, sou emoção, na alma sou sentimento e razão. sou a mulher que amo, sou menina que gosta de protecção. sou tantas outras coisas. Sou Mãe! aqui está uma palavra Bonita! gosto de palavras bonitas!... temos muito por onde ser felizes, por isso façam o favor de serem felizes. e agora apetece-me ficar perigosamente bonita! até logo

aqui, interpretado por muitos anónimos


Por: Heloisa Saboya de Castro (60 anos)
Gostei muito do filme! O elenco, roteiro e principalmente a música! Busco CD da trilha sonora.

Por: Ramos (50 anos)
Tudo o que fala sobre paris é muito bom.

Por: Marcia Assis (49 anos)
Gostei muito do filme; aborda várias facetas do dia-a-dia de pessoas comuns. Amei o final, com as imagens da bela cidade luz, sob o olhar do protagonista, cujo futuro é indefinido.








quinta-feira, outubro 14, 2010

Milagrário Pessoal

...
Muito bom dia, desculpe se a incomodo, disse, quando a telefonista me atendeu. A boa educação é um luxo do século passado, ao qual as telefonistas e secretárias ainda são sensíveis. Pretendo falar com a jornalista Mara Bruto da Costa.

Mara, explicou a telefonista, estava ocupada numa reunião. Pediu-me o meu número de telefone, e assegurou-me que a jornalista devolveria a chamada o mais rapidamente possível. Não esperei, com efeito, nem dez minutos. A voz surpreendeu-me. Aveludada e cheia e quente – com carácter. Dou-me conta, enquanto escrevo, que adjectivo a voz dela como se fosse um vinho, queremos com isso significar que possui um alto teor alcoólico. A voz de Mara pareceu-me, é bem verdade, embriagante. Apresentei-me. Tive sorte. A jornalista disse-me que lera o meu testemunho sobre a guerra civil de Espanha. Ficara interessada em saber como é que um jovem anarquista angolano, muito jovem mesmo, se fora envolver num conflito tão distante. Trocamos algumas palavras sobre o livro. Aproveitei o primeiro silêncio para explicar a razão do telefonema:

Trabalho num ensaio sobre neologismo. Uma das suas reportagens chamou-me atenção.

Não estranhou. Não fez perguntas. Pediu-me para passar pelo jornal ao fim da tarde, lancharíamos num café próximo. Eram dezoito horas em ponto quando me apresentei ao porteiro. O Público está instalado num edifício elegante, em Picoas, próximo de um parque interior, com numerosos cafés e restaurantes. Mara desceu. Imaginei-a alta, de pele escura e cabelos lisos, apanhados numa longa trança. Acertei apenas no tom da pele. O cabelo, curto, espetado, dava-lhe um ar um pouco masculino, agressivo, que os doces olhos amendoados logo desmentiam. Levou-me até uma esplanada. Vinha caindo uma luz de Outubro, rasa e frágil, dourada como as folhas das árvores. Ela pediu um café; eu, um chá de cidreira.

O senhor está muito bem. Dava-lhe, no máximo, sessenta e cinco.

É o problema das pessoas como eu, que viveram demasiado tempo, podem tirar-nos duas décadas do lombo e ainda assim continuamos velhos.

Mara sorriu:

E então, o que quer de mim?

Repeti o que lhe dissera ao telefone: estava a trabalhar num ensaio sobre neologismo e ao ler, dias antes, a reportagem de uma visita a Olinda, assinada por ela, deparara surpreendido com três palavras desconhecidas. Disse-lhe quais eram. Gostaria de saber onde as encontrara:

São novas?! Abriu ainda mais os belos olhos numa expressão de genuíno espanto. Não, não podem ser palavras novas. O senhor desconhecia essas palavras?

Desconhecia. Nunca antes foram utilizadas, ao menos em Portugal. Não estão dicionarizadas.

Estranho! Mara semicerrou os olhos, pensativa. Tem graça, tem mesmo muita graça. Li em algum lado que o português europeu se modificou mais, nos últimos séculos, do que a variante brasileira.

Sim, em parte sim. As periferias tendem a ser mais conservadoras do que o centro.

Então não podem ser arcaísmos? Palavras que desapareceram em Portugal mas que continuam a ser utilizadas no Nordeste do Brasil? Por isso nos parecem tão familiares. Talvez eu as tenha escutado lá, no Recife, em Olinda, e de tal forma me pareceram minhas que as comecei a utilizar sem me aperceber disso.

É possível, concordei. Infelizmente essas palavras também não foram dicionarizadas no Brasil. Não as encontrei em livros, em jornais, em blogues, em parte alguma, nem aqui nem lá, antes de terem aparecido pela primeira vez no seu artigo. Faz ideia onde as possa ter escutado?

Mara sacudiu a cabeça. Os olhos brilhavam. À nossa volta a cidade escurecia. Era como se a luz da tarde houvesse deslizado inteira para dentro deles. Lembrei-me de uma mulher, numa vida anterior, que me atraía com o fogo de uns olhos idênticos. Tentei concentrar-me no que Mara me dizia:

Foi em Olinda num pequeno bar. Nem sei se é possível chamar-lhe de bar, uma mercearia, na Rua do Amparo, chamada Bodega do Veio, onde se vende de tudo um pouco, desde latas de sardinha a queijo coalho, e que nos últimos anos se tornou, ao fim da tarde, um ponto de encontro da juventude local. Não há mesas. Bebe-se de pé, no meio da rua, a rir, a conversar. Uma festa. Eu já tinha tomado três cervejas quando se aproximou de mim um senhor de certa idade. Achei-o deslocado, entre os rapazes de bermudas coloridas, as meninas com o umbigo à mostra. Vestia um fato de linho, sapatos brancos de laca, e trazia na cabeça um panamá impecável, como nos filmes. Reparou no meu sotaque e quis saber se eu era portuguesa. Disse-lhe que sim, alfacinha, e ele pôs-se a falar sobre o Mosteiro dos Jerónimos, os pastéis de Belém, as pequenas ruelas, no Chiado e Bairro Alto, por onde terá cirandado Fernando Pessoa. Quando lhe perguntei quantas vezes visitara a cidade, sorriu, divertido: nenhuma. Nunca na vida saíra de Pernambuco. Apresentou-se: Alexandre Anhanguera, poeta. O professor sabe quem é?

Sim. Confirmei. Alexandre Anhanguera publicou nos anos cinquenta, com certo sucesso, uma recolha de poemas de inspiração sebastianista. Li alguns versos, em antologias, e pareceram-me um tanto ou quanto bizarros, no que respeita à temática, mas não inteiramente ruins.

Em 1838, o beato João António dos Santos sonhou com Dom Sebastião. O jovem rei assegurou-lhe que ressuscitaria nos sertões de Pernambuco, com o objectivo de ali instalar um reino de justiça e prosperidade, sendo para isso necessário uma cerimonia durante a qual as duas enormes pedras da serra do Catolé teriam de ser lavadas com sangue humano. O movimento, retomado pelo cunhado do beato, João Ferreira, conseguiu levar muitos milhares de fiéis para a região. Oitenta deles foram atirados do alto das pedras. Dom Sebastião, ao que parece, nunca apareceu. Talvez achasse imprescindível um pouco mais de sangue.

Alexandre Anhanguera escutou, em criança, as lendas que se criaram à volta dos seus conterrâneos sebastianistas. Aquilo impressionou-o. Criou um movimento para o resgate e exaltação das tradições locais. Anhanguera, a propósito, é um apelido tupi. Significa alma antiga, ou vida antiga, e nomeia uma entidade protectora das florestas e dos animais bravios. Os jesuítas, que no inicio da colonização portuguesa se dispuseram a catequizar os índios, confundiram Anhanguera com o diabo. O nome não significa que Alexandre possua ascendência indígena. No século XIX, movidos por sentimentos nacionalistas, muitas famílias da aristocracia brasileira trocaram os apelidos portugueses por outros de origem tupi.

Mara escutou-me até ao fim. Os jornalistas são bons ouvintes, gostam de escutar. Disse-me finalmente, que se lembrara de Alexandre Anhanguera ao ouvir-me falar de neologismos. O velho contara-lhe uma história um pouco estranha. Divertida, mas um pouco estranha.

Gravei a conversa. Tenho-a aqui, no meu iPhone. Quer ouvir? Acho que vai gostar.

[as partidas, muitas vezes não significam apenas ferias, descanso, cinema, teatro, exposições... significam também, puder realizar muitos objectivos que infelizmente em Angola ainda são irrealizáveis devido a variadíssimos factos, entre eles, o custo das coisas.

o regresso, significa então que muitas dessas coisas vêem na bagagem. a música, os filmes e indiscutivelmente os livros. Milagrário Pessoal é o novo romance do José Eduardo Agualusa, uma viagem de amor que passa pela história da língua portuguesa e que infelizmente, quando aterrar nas prateleiras das pouquíssimas livrarias que Luanda tem, terá o preço de um objecto de luxo!]

e no regresso, trazemos connosco as pessoas, as fachadas, as cores, os detalhes e mais





terça-feira, outubro 12, 2010

domingo, outubro 10, 2010

uma manhã de domingo

isso, também é Paris

aceitação de um estrangeiro nos dias de hoje como um membro que também faz parte de determinada cidade, muitas vezes depende da tolerância e da forte mentalidade de que quando as diferenças são bem exploradas, raramente o resultado é negativo.

em Luanda temos passado por isso, e muitas vezes a afirmação de que o estrangeiro só lá está para tirar o lugar que pertence a um mangolê, é muitas vezes veiculada no ar que respiramos.

actualmente, será que existe uma grande cidade que consegue viver sem os diferentes (entenda-se, os estrangeiros)?

pois bem, nesse ponto, Paris não é excepção nem diferente das grandes cidades e sem fugir a esse facto, a cidade é uma montra de diferenças. há de tudo por cá, martiniquenos casados com colombianas, japoneses que todos os dias apanham o metro, a brasileira que estuda psicologia, um camorenês que é guia turístico ou o angolano que almoça no Kunitora, um restaurante com comida realmente japonesa, e no fundo, não há nada de negativo, no fundo, são pessoas que deixaram o seu espaço para cá vir e numa troca e mistura de hábitos, dar o que é seu e ao mesmo tempo receber um pouco de cada de todos que cá vivem. por exemplo, alguém já imaginou como se deve sentir uma criança muçulmana que nunca tinha visto mulheres com a cara destapadas? um idoso do Benim que na Rue Saint Louis en L´ile vê pela primeira vez na sua vida dois homens a beijaram-se? a francesa que se surpreende com o rapaz moçambicano que no metro cheio de gente, sempre oferece o seu lugar quando surge a sua a sua frente um mais velho. enfim, diferenças que nunca deveriam nos afastar.

apesar de algumas posições de falta de tolerância que a França agora adopta, há nessa cidade muitos pontos positivos para um lugar que todos os dias cruzam-se milhares de pessoas com conceitos de vida totalmente desiguais.

360°, agora as imagens







terça-feira, outubro 05, 2010

Paris, e a quarta foi de vez

geralmente usa-se a expressão a terceira, mas para mim, só foi a quarta que consegui penetrar com mais profundidade para dentro de Paris. das outras vezes, foram sempre passagens com alguma correria, e o facto de vir para cá de carro, apenas circulei pelos arredores porque a intenção era evitar o transito do centro.

hoje, cá estamos na cidade que tem um bistrô em cada esquina, a cidade do amor para muitos ou a cidade das misturas para outros. há de tudo no metro de Paris, mas senti que os japoneses estão a ganhar terreno... ainda vi ciganos, que pelos vistos nem todos foram postos na fogueira.

os franceses são conservadores, os franceses são patriotas, os franceses são eles e só eles, nisso, não há qualquer diferença com as restantes cidades de França que conheço, a postura muitas vezes snob, o desprezo por tudo aquilo que não lhes pertence e o episodio de raramente aceitaram se dirigirem ao turista em inglês, não se encaixam comigo, penso até, que por causa do conservadorismo, muitas proibições chegam a ser ridículas!

ainda assim, penso que os parisienses podem e devem se orgulhar pela beleza da cidade... mesmo saindo da rota dos locais turisticamente concorridos, há nessa cidade beleza em presença constante.

para já, têm sido os cafés e as pessoas que mais tenho fotografado. veremos como serão os próximos dias.



um convite aos de lá

Africa: See You, See Me! from Terra Esplêndida on Vimeo.



segunda-feira, outubro 04, 2010

360º de muitas sensações!

eram 5h:11 da manhã quando cheguei ao estádio municipal de Coimbra, e o número de tendas a minha frente parecia que estávamos numa zona de campismo! montes de tendas rigorosamente organizadas em fila indiana, e para não perder mais tempo, dirigi-me para porta que correspondia a minha entrada. na respectiva fila, fiz a minha inscrição e pelo incrível que pareceu, o meu número de entrada ao paraíso era o 243, nada mau, ate porque já havia alguns que estavam lá à 5 noites seguidas.

daí em diante, eu e os restantes membros daquele grupo de desconhecidos que tinham em comum o mesmo objectivo, nada mais tínhamos a fazer se não esperar. e foi o que fizemos, vendo as horas passar por vezes a passos de camaleão e outras que na distracção da conversa de uns, no jogo das cartas ou no pequeno debate que tive com um grupo de catalãs, que não sei porque motivo insistiam comigo que o Nelson Mandela ainda era o presidente da África do Sul!

as 16h:00, foi a correria para o melhor lugar, mas para muitos como eu, a entrada e mesmo antes de nos preocuparmos em ocupar melhor posição, foi o espanto que a estrutura que víamos a nossa frente! uma aranha gigante que bem podia ser uma daquelas naves que Spielberge usa nos seus filmes.

sou e sempre serei suspeito para falar dos U2, ou será que é com facilidade que alguém consegue falar sobre a sua religião? não tenho medo de afirmar que o quarteto irlandês é para mim a melhor e maior banda de música mundial, e por isso e por tudo que as letras do Bono representam na minha vida, não foi sacrifício nenhum andar na luta da procura dos bilhetes, passar as últimas noites em claro para adiantar o trabalho e assim puder estar em Coimbra, nem com as 12 longas horas de espera para mais uma vez ouvir ao vivo musicas como Miss Sarajevo, Mysterious Ways, Sunday Bloody Sunday, ver o Bono a apresentar as palavras do arcebispo Desmond Tutu e outras sensações inexplicáveis.

noite memorável num palco memorável e com um ecrã memorável, tudo a 360º e com duas pontes giratórias que serviam de passagem para a banda entre o palco e rampa circular que se encontravam os outros fãs, porque nós, os cerca de 2000 felizardos, estávamos na parte interior da rampa bem coladinhos ao palco e vezes sem conta vimos passar por cima de nós, The Edge, o Bono, Adam Clayton e até o Larry Mullen Jr. que a certa altura abandonou a bateria para vir cá a baixo tocar batuque.

são 3h:43 da manhã, já estou no Porto e apesar do cansaço das pernas e o sono que aperta, não podia deixar essas palavras para amanhã... afinal, as coisas boas costumam a durar pouco tempo.

[Coimbra, como pequena cidade organizou-se muito bem para receber o número de pessoas que normalmente seguem uma banda do tamanho dos U2, tudo impecável até o comboio especial para tirar da cidade todos aqueles que não tinham necessidade nem condições para lá dormir.

Porto, a segundo cidade mais importante de Portugal não se preparou para o evento, penso que não deram importância ao facto de Coimbra estar ali perto e que muitos dos fãs que foram ver o concerto ou vivem na cidade invicta ou usaram o aeroporto Sá Carneiro para chegar e partir. a chegada a estação de Porto Campanha, não havia táxis e com a chuva que caia as 2 horas e tal, os poucos funcionários da estação encaminhavam-nos para fora porque a estação iria fechar e nós, tivemos de ficar a chuva a espera dos táxis que não chegavam! mas como disse o funcionário arrogante ao grupo de espanholitas desagradas com tudo aquilo: aqui vocês não têm direito de reclamar nada.]

Lisboa, outras travessas, outras calçadas, outros becos, mais descobertas