sexta-feira, dezembro 24, 2010
feliz natal para todos que por cá ainda vão passando. obrigado
quarta-feira, dezembro 22, 2010
segunda-feira, dezembro 13, 2010
descobertas
o homem usava um desses olhares esguios, espécie de mirada tangencial que se direcciona mais para um tempo do que um lugar, e falou tão baixo que tive que diminuir o tom da minha respiração para poder ouvi-lo: “vai uma palavrinha?”
finalmente entendi, e busquei – com o olhar – as suas mãos calmas, julgando que nelas encontraria alguma explicação para aquela oferta, mas eram simplesmente as mãos nuas e limpas de um homem tranquilo, vestido de um modo obsoleto mas discreto, usando um fato completo de cor cinzenta que no brasil, como se sabe, atende pelo nome de “terno”.
“desculpe, não entendo”, balbuciei. o homem convidou-me a sentar num simpático banco de jardim, num dos lugares mais frescos do mundo, o chamado jardim botânico, na simpática (alguns dizem “maravilhosa”) cidade do rio de janeiro.
“pergunto se você está interessado em comprar uma palavra muito especial?”
e sim, eu começava a entender o episódio, não no sentido concreto que seguisse uma qualquer lógica das transacções comerciais como as conhecemos no mundo moderno, mas entrando já no campo das negociações metafísicas, género de trocas humanas que lidam com o inexplicável e em cujo âmbito a pessoa deve decidir se quer ou não entrar.
“de que palavra se trata?”, procurei saber. “há informações que só se conseguem mediante a troca de um certo valor”, o homem anunciou tranquila mas seriamente. “e de quanto estamos a falar?”, procurei a minha carteira com medo que ela já lá não estivesse. mas estava. não se tratava, de modo algum, de um burlador vulgar, ou de um esquema combinado em grupo ou com mais um compincha, para me sacarem a moeda “real”. era um esquema, sim, mas bem mais profundo. “quanto acha que vale uma palavra inventada e explicada por guimarães rosa?” – o homem viu que os meus olhos brilharam e a partir daí eu estava, por assim dizer, caçado.
desembolsei a quantia acordada, que não foi pouca, antes mesmo de saber que vocábulo era. o homem discursava lentamente. depois de ter guardado o dinheiro, fumava com estilo, mirava as árvores, contemplava os pássaros e, mesmo de olhos abertos, era nítido que viajava para uma memória comprida como um rio e sólida como uma ponte de madeira que formasse o cais para aonde me convidava a viajar também.
o mestre guimarães rosa ofereceu a palavra ao meu falecido pai, mas eu estava presente, e posso garantir-lhe que sou herdeiro único – tive que acreditar. o chá havia sido servido, guimarães rosa fumava, papai não gostava de fumar, mas na presença do mestre, permitia..., a sala era invadida por cheiros de chá, café, flores e o perfume do fim da tarde. as crianças, desde que silenciosas, eram autorizadas a permanecer durante os serões. e guimarães falou, explicou, deu acesso à criação. que era uma palavra que ainda não havia e fazia falta; que era palavra de retenção – mas redonda, que era assim um modo de dizer que fazia falta na nossa língua, dita portuguesa.
que palavra, afinal?” – quis saber, tentando entender se o preço se justificava. o homem, calmo, alisando com a mão a prata do seu lindo relógio de bolso, levantou-se, respirando fundo. “veja, as palavras não têm preço. custam o que queremos dar por elas...” levantei-me também: “ou custam o que decidimos que valem no momento de as vendermos... confesso que é a primeira vez que compro uma palavra.”
o olhar do homem alterou-se, tornou-se fresco. veio da viagem e regressou ao momento presente, menos intenso, porém ainda em suspensão. “privácia”, disse.
para atenuar o meu silêncio e encantamento, acrescentou: “guimarães rosa achava que essa palavra nos estava em falta. não é privacidade; é privácia. vem do inglês. como em privacy. e foi assim...”
voltei a sentar-me, vendo-o partir, contando o dinheiro e guardando-o novamente no bolso. de trás, confesso, não parecia o mesmo homem. talvez mais alto, talvez mais denso. pareceu-me ouvir a promessa de que nos voltaríamos a ver. no ar, deixava um conselho: “a mesma palavra não pode ser vendida duas vezes.” nem outra coisa me tinha ocorrido. guardaria a palavra na minha colecção privada de objectos internos.
tive apenas o leve presságio que talvez guimarães rosa ficasse magoado com o episódio. “ou talvez não.”
Ondjaki . Angola . Vai uma palavrinha...?
sexta-feira, dezembro 10, 2010
quinta-feira, dezembro 09, 2010
quarta-feira, dezembro 08, 2010
quinta-feira, dezembro 02, 2010
segunda-feira, novembro 29, 2010
sábado, novembro 13, 2010
para ti, que nunca me lês!
sexta-feira, novembro 12, 2010
quarta-feira, novembro 03, 2010
segunda-feira, novembro 01, 2010
o post que se segue, é um presente a todos os “ausentes” que se mantêm presente no meu mundo
sexta-feira, outubro 29, 2010
terça-feira, outubro 26, 2010
sexta-feira, outubro 22, 2010
quinta-feira, outubro 21, 2010
quarta-feira, outubro 20, 2010
domingo, outubro 17, 2010
aqui, interpretado por muitos anónimos
quinta-feira, outubro 14, 2010
Milagrário Pessoal
...
Muito bom dia, desculpe se a incomodo, disse, quando a telefonista me atendeu. A boa educação é um luxo do século passado, ao qual as telefonistas e secretárias ainda são sensíveis. Pretendo falar com a jornalista Mara Bruto da Costa.
Mara, explicou a telefonista, estava ocupada numa reunião. Pediu-me o meu número de telefone, e assegurou-me que a jornalista devolveria a chamada o mais rapidamente possível. Não esperei, com efeito, nem dez minutos. A voz surpreendeu-me. Aveludada e cheia e quente – com carácter. Dou-me conta, enquanto escrevo, que adjectivo a voz dela como se fosse um vinho, queremos com isso significar que possui um alto teor alcoólico. A voz de Mara pareceu-me, é bem verdade, embriagante. Apresentei-me. Tive sorte. A jornalista disse-me que lera o meu testemunho sobre a guerra civil de Espanha. Ficara interessada em saber como é que um jovem anarquista angolano, muito jovem mesmo, se fora envolver num conflito tão distante. Trocamos algumas palavras sobre o livro. Aproveitei o primeiro silêncio para explicar a razão do telefonema:
Trabalho num ensaio sobre neologismo. Uma das suas reportagens chamou-me atenção.
Não estranhou. Não fez perguntas. Pediu-me para passar pelo jornal ao fim da tarde, lancharíamos num café próximo. Eram dezoito horas em ponto quando me apresentei ao porteiro. O Público está instalado num edifício elegante, em Picoas, próximo de um parque interior, com numerosos cafés e restaurantes. Mara desceu. Imaginei-a alta, de pele escura e cabelos lisos, apanhados numa longa trança. Acertei apenas no tom da pele. O cabelo, curto, espetado, dava-lhe um ar um pouco masculino, agressivo, que os doces olhos amendoados logo desmentiam. Levou-me até uma esplanada. Vinha caindo uma luz de Outubro, rasa e frágil, dourada como as folhas das árvores. Ela pediu um café; eu, um chá de cidreira.
O senhor está muito bem. Dava-lhe, no máximo, sessenta e cinco.
É o problema das pessoas como eu, que viveram demasiado tempo, podem tirar-nos duas décadas do lombo e ainda assim continuamos velhos.
Mara sorriu:
E então, o que quer de mim?
Repeti o que lhe dissera ao telefone: estava a trabalhar num ensaio sobre neologismo e ao ler, dias antes, a reportagem de uma visita a Olinda, assinada por ela, deparara surpreendido com três palavras desconhecidas. Disse-lhe quais eram. Gostaria de saber onde as encontrara:
São novas?! Abriu ainda mais os belos olhos numa expressão de genuíno espanto. Não, não podem ser palavras novas. O senhor desconhecia essas palavras?
Desconhecia. Nunca antes foram utilizadas, ao menos em Portugal. Não estão dicionarizadas.
Estranho! Mara semicerrou os olhos, pensativa. Tem graça, tem mesmo muita graça. Li em algum lado que o português europeu se modificou mais, nos últimos séculos, do que a variante brasileira.
Sim, em parte sim. As periferias tendem a ser mais conservadoras do que o centro.
Então não podem ser arcaísmos? Palavras que desapareceram em Portugal mas que continuam a ser utilizadas no Nordeste do Brasil? Por isso nos parecem tão familiares. Talvez eu as tenha escutado lá, no Recife, em Olinda, e de tal forma me pareceram minhas que as comecei a utilizar sem me aperceber disso.
É possível, concordei. Infelizmente essas palavras também não foram dicionarizadas no Brasil. Não as encontrei em livros, em jornais, em blogues, em parte alguma, nem aqui nem lá, antes de terem aparecido pela primeira vez no seu artigo. Faz ideia onde as possa ter escutado?
Mara sacudiu a cabeça. Os olhos brilhavam. À nossa volta a cidade escurecia. Era como se a luz da tarde houvesse deslizado inteira para dentro deles. Lembrei-me de uma mulher, numa vida anterior, que me atraía com o fogo de uns olhos idênticos. Tentei concentrar-me no que Mara me dizia:
Foi em Olinda num pequeno bar. Nem sei se é possível chamar-lhe de bar, uma mercearia, na Rua do Amparo, chamada Bodega do Veio, onde se vende de tudo um pouco, desde latas de sardinha a queijo coalho, e que nos últimos anos se tornou, ao fim da tarde, um ponto de encontro da juventude local. Não há mesas. Bebe-se de pé, no meio da rua, a rir, a conversar. Uma festa. Eu já tinha tomado três cervejas quando se aproximou de mim um senhor de certa idade. Achei-o deslocado, entre os rapazes de bermudas coloridas, as meninas com o umbigo à mostra. Vestia um fato de linho, sapatos brancos de laca, e trazia na cabeça um panamá impecável, como nos filmes. Reparou no meu sotaque e quis saber se eu era portuguesa. Disse-lhe que sim, alfacinha, e ele pôs-se a falar sobre o Mosteiro dos Jerónimos, os pastéis de Belém, as pequenas ruelas, no Chiado e Bairro Alto, por onde terá cirandado Fernando Pessoa. Quando lhe perguntei quantas vezes visitara a cidade, sorriu, divertido: nenhuma. Nunca na vida saíra de Pernambuco. Apresentou-se: Alexandre Anhanguera, poeta. O professor sabe quem é?
Sim. Confirmei. Alexandre Anhanguera publicou nos anos cinquenta, com certo sucesso, uma recolha de poemas de inspiração sebastianista. Li alguns versos, em antologias, e pareceram-me um tanto ou quanto bizarros, no que respeita à temática, mas não inteiramente ruins.
Em 1838, o beato João António dos Santos sonhou com Dom Sebastião. O jovem rei assegurou-lhe que ressuscitaria nos sertões de Pernambuco, com o objectivo de ali instalar um reino de justiça e prosperidade, sendo para isso necessário uma cerimonia durante a qual as duas enormes pedras da serra do Catolé teriam de ser lavadas com sangue humano. O movimento, retomado pelo cunhado do beato, João Ferreira, conseguiu levar muitos milhares de fiéis para a região. Oitenta deles foram atirados do alto das pedras. Dom Sebastião, ao que parece, nunca apareceu. Talvez achasse imprescindível um pouco mais de sangue.
Alexandre Anhanguera escutou, em criança, as lendas que se criaram à volta dos seus conterrâneos sebastianistas. Aquilo impressionou-o. Criou um movimento para o resgate e exaltação das tradições locais. Anhanguera, a propósito, é um apelido tupi. Significa alma antiga, ou vida antiga, e nomeia uma entidade protectora das florestas e dos animais bravios. Os jesuítas, que no inicio da colonização portuguesa se dispuseram a catequizar os índios, confundiram Anhanguera com o diabo. O nome não significa que Alexandre possua ascendência indígena. No século XIX, movidos por sentimentos nacionalistas, muitas famílias da aristocracia brasileira trocaram os apelidos portugueses por outros de origem tupi.
Mara escutou-me até ao fim. Os jornalistas são bons ouvintes, gostam de escutar. Disse-me finalmente, que se lembrara de Alexandre Anhanguera ao ouvir-me falar de neologismos. O velho contara-lhe uma história um pouco estranha. Divertida, mas um pouco estranha.
Gravei a conversa. Tenho-a aqui, no meu iPhone. Quer ouvir? Acho que vai gostar.
[as partidas, muitas vezes não significam apenas ferias, descanso, cinema, teatro, exposições... significam também, puder realizar muitos objectivos que infelizmente em Angola ainda são irrealizáveis devido a variadíssimos factos, entre eles, o custo das coisas.
o regresso, significa então que muitas dessas coisas vêem na bagagem. a música, os filmes e indiscutivelmente os livros. Milagrário Pessoal é o novo romance do José Eduardo Agualusa, uma viagem de amor que passa pela história da língua portuguesa e que infelizmente, quando aterrar nas prateleiras das pouquíssimas livrarias que Luanda tem, terá o preço de um objecto de luxo!]
terça-feira, outubro 12, 2010
domingo, outubro 10, 2010
isso, também é Paris
aceitação de um estrangeiro nos dias de hoje como um membro que também faz parte de determinada cidade, muitas vezes depende da tolerância e da forte mentalidade de que quando as diferenças são bem exploradas, raramente o resultado é negativo.
em Luanda temos passado por isso, e muitas vezes a afirmação de que o estrangeiro só lá está para tirar o lugar que pertence a um mangolê, é muitas vezes veiculada no ar que respiramos.
actualmente, será que existe uma grande cidade que consegue viver sem os diferentes (entenda-se, os estrangeiros)?
pois bem, nesse ponto, Paris não é excepção nem diferente das grandes cidades e sem fugir a esse facto, a cidade é uma montra de diferenças. há de tudo por cá, martiniquenos casados com colombianas, japoneses que todos os dias apanham o metro, a brasileira que estuda psicologia, um camorenês que é guia turístico ou o angolano que almoça no Kunitora, um restaurante com comida realmente japonesa, e no fundo, não há nada de negativo, no fundo, são pessoas que deixaram o seu espaço para cá vir e numa troca e mistura de hábitos, dar o que é seu e ao mesmo tempo receber um pouco de cada de todos que cá vivem. por exemplo, alguém já imaginou como se deve sentir uma criança muçulmana que nunca tinha visto mulheres com a cara destapadas? um idoso do Benim que na Rue Saint Louis en L´ile vê pela primeira vez na sua vida dois homens a beijaram-se? a francesa que se surpreende com o rapaz moçambicano que no metro cheio de gente, sempre oferece o seu lugar quando surge a sua a sua frente um mais velho. enfim, diferenças que nunca deveriam nos afastar.
apesar de algumas posições de falta de tolerância que a França agora adopta, há nessa cidade muitos pontos positivos para um lugar que todos os dias cruzam-se milhares de pessoas com conceitos de vida totalmente desiguais.