terça-feira, junho 15, 2010

ainda o mundial, África e os africanos 1

[um jornalista (Tiago Carrasco), um fotógrafo (João Henriques) e um repórter de imagem (João Fontes) aventuraram-se durante 5 meses numa viagem de 30 mil quilómetros, passando por 19 países, da capital portuguesa até a principal cidade da Copa do Mundo, Joanesburgo. Publicada na Revista Única, compartilho aqui à aventura num copy/paste sem censura.]

Espanha
Falsa partida. Como o patrocínio chegou tarde, atrasámo-nos na encomenda da câmara de filmar, comprada em segunda mão a um armazém londrino. Além disso, a funcionária do banco, esqueceu-se de carregar no “Enter” para efectuar a transacção, e, resolvido o problema, foi um nevão em Espanha que reteve a encomenda num aeroporto do País Basco. Mas a partida estava marcada e não pudemos esperar. Resultado – três dias em Algeciras e Tarifa à espera que nos trouxessem a máquina. Foi aqui que conhecemos Amadou Sow, um senegalês de 20 anos que atravessou o estreito de Gibraltar com mais 100 pessoas numa piroga clandestina. Com a ilusão de se tornar jogador de futebol, saiu da remota aldeia de Gurel Ali para juntar dinheiro para chegar às Canárias. Trabalhou nas obras na Argélia e vendeu água no Níger: “Se vendesse 20 litros num dia, podia comer. Se vendesse menos, passava fome”, disse. Em Marrocos, foi perseguido pela máfia fronteiriça e viu dois amigos serem decapitados à sua frente. Acabou por ser preso, mas conseguiu escapar a meio da noite: “Nas celas, os presos dormiam uns em cima dos outros e defecavam na sala.” Desembarcou em Tenerife com 17 anos, e desde aí nunca lhe deram um contrato de trabalho. Desiludido com a Europa prometida, junta hoje dinheiro para voltar à sua aldeia no Senegal, ironicamente, c caminho oposto do pretendido pela maioria so africanos que iríamos conhecer.

Marrocos
“Já me chegaram informações de que podem estar a ser vigiados”, dizem-me do outro lado da linha, numa cabine pública de El Aaiúm, Sara Ocidental. “Vou dar-te dois números. Não sei se valera a pena ligares a um deles, porque os marroquinos já lhe partiram as pernas. Aponta este... chama-se Hamad.” Encontramo-nos com Hamad às escondidas, atrás de um colégio num bairro residencial. É um dos principais activistas pela independência do Sara Ocidental, antiga colónia espanhola plantada no meio do deserto, sob anexação de Marrocos há 34 anos. Leva-nos para sua casa, local de reunião dos defensores da causa, frequentada, inclusive, por Aminetu Haidar, a cara da luta saraui. Ao contrário de 200 mil dos seus compatriotas que habitam num campo de refugiados na Argélia, Hamad escolheu ficar em El Aaiúm. Entre copos de chá, conta-nos os horrores que sofreu às mãos dos marroquinos: “Já fui espancado no hospital com madeiras e ferros, na prisão deram-me choques eléctricos no pénis e nas orelhas, atacaram-me durante horas com as pernas junto ao peito (tortura da galinha) e de braços abertos (tortura do avião).” É interrompido por uma chamada: “Devem ir-se embora. Vem aí uma pessoa de que suspeito, que me liga sempre que estou com estrangeiros.” Bebemos o terceiro e ultimo copo de chá e despedimo-nos. A tradição saraui diz que se devem tomar três copos de chá, cada um deles com um sabor distinto. O primeiro deve ser amargo, como a vida, o segundo doce, como o amor, o terceiro lento, como a morte. Hamad só beberá o ultimo trago quando for livre.
continua...

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