sexta-feira, junho 18, 2010

ainda o mundial, África e os africanos 2

[um jornalista (Tiago Carrasco), um fotógrafo (João Henriques) e um repórter de imagem (João Fontes) aventuraram-se durante 5 meses numa viagem de 30 mil quilómetros, passando por 19 países, da capital portuguesa até a principal cidade da Copa do Mundo, Joanesburgo. Publicada na Revista Única, compartilho aqui à aventura num copy/paste sem censura.]

Mauritânia
Onde se disputa o maior clássico do futebol mauritano? Como não poderia deixar de ser, sobre a fina areia do deserto do Sara. Assistimos à partida entre o FC Nouâhdibou, campeão nacional em 2009, e o detentor da Taça, o SNIM. As dunas brancas do estádio: na duna poente, estão os sócios, adeptos vestidos com o boubou azul tradicional do país. As claques estão na bancada central, à sombra de um muro, atrás dos dirigentes dos clubes, instalados em cadeiras de plástico, que constituem a tribuna de honra. No topo norte, dezenas de adeptos assistem ao jogo no interior dos carros estacionados. No topo sul, pastam dromedários. As balizas estão tortas e ferrugentas, e as linhas foram calcadas com os pés. O futebol na Mauritâniaé bastante pobre, mas merece louvor por conseguir juntar mouros e africanos negros, algo impossível em qualquer outro lado. A escravatura atinge ainda 600 mil pessoas na Mauritânia, 20 por cento da população do país. Dominam os senhores Hassaniya, descendentes de árabes, sobre os escravos de pele negra. Na última jogada da partida, com o resultado em 0 – 0, o avançado do SNIM cabeceia a bola em direcção às redes de pesca da baliza. Os miúdos da claque rebolam pelas dunas, levanta-se areia, caem cadeiras de plástico e turbantes. Caprichosamente, a bola bate na barra, vai ao chão e ressalta num monte de areia, afastando-se da baliza. Os jogadores tentam encontrar a marca da bola na areia para reivindicar o tento. O arbitro apita para o fim. Os jogadores do Nouâhdibou entram à pressa no autocarro e os do SNIM vão a pé para casa. Os adeptos ficam a discutir se a bola passou a linha. Assim é um dérbi na Mauritânia – pobre, mas com tudo a que um dérbi tem direito...

Senegal
Pensei que iam arrancar a orelha ao João Fontes, o nosso repórter de imagem. Estávamos em Toupa, cidade sagrada para os fiéis da congregação islâmica dos mourids, durante a concorrida peregrinação do Magal. A ideologia da irmandade criada por Cheikh Amadou Bamba, em 1883, rejeita a utilização de brincos pelos homens, e um dos seus súbditos ficou extremamente ofendido. “Vou arrancar-te os brincos”, gritava. Felizmente, a discussão acabou quando o João tapou as orelhas com um casaco. Touba é uma cidade–estado, com leis próprias, que durante a peregrinação, uma das maiores do mundo islâmico, aumenta a sua população de 120 mil pessoas para dois milhões. Instala-se o caos. As ruas transbordam de gente, e o ar transforma-se numa névoa de poeira e de fumo tóxico. Na Grande Mesquita, imponente com os seus cinco minaretes de mármore, os peregrinos atropelam-se e espinham-se para orar no mausoléu do seu líder espiritual. Caminho durante horas pela cidade, esborrachado e empurrado pela multidão, ficando com a face e os pés negros de sujidade. Espera-me um banho com água do poço em casa do Darou, o nosso anfitrião. Possuir uma casa em Toupa é a mais alta expressão de prosperidade para um mourid. Dessa forma, pode receber amigos, familiares e peregrinos mais necessitados. Darou recebe cerca de 30 pessoas. Nós dormimos ao ar livre, no terraço, para onde são encaminhados os homens solteiros, sendo o piso térreo ocupado por casais, mulheres e crianças. Enquanto adormecia, ouvia o som dos carros e das pessoas que viajavam umas por cima das outras nas caixas dos camiões. Ofuscados pela luz de Cheikh Bamba, muitos motoristas perdem o controlo das viaturas. 32 pessoas morreram a caminho do Magal este ano. A patética ironia de morrer a caminho da salvação...

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