o frio aproxima uma pessoa de si própria. saímos à rua e, dentro do casaco, para nos protegermos do frio ofensivo exterior, apertamo-nos como se, afinal, muito dentro do casaco não estivesse um, mas dois. não um sujeito, mas dois sujeitos. e por isso mesmo sair à rua no inverno é finalmente dar um passo em direcção a uma outra parte do nosso corpo.
um homem que na rua aperta o casaco e assim se aperta a si próprio faz, em caminhada livre e a céu aberto, uma rápida autossessão de analise psicológica e psicanalítica e física e etc. e tudo. frio e sol, então – combinação sensatamente perfeita. protege-te e comemora, eis o que nos diz o sol e o frio, cada um a seu tempo.
no calor, o nosso corpo afasta-se de nós, afasta-se do centro. está para ali à minha a frente ou ao meu lado. no frio, pelo contrário, o corpo torna-se aquilo que quero proteger e aquilo que me protege. por isso é que nos apertamos muito no inverno, no exterior. temos de fazer duas acções opostas ao mesmo tempo. proteger e ser protegido. no inverno, o corpo ocupa menos espaço. de facto, é impossível exigir reflexão a um povo que viva debaixo do sol e do calor permanentes. acima de trinta graus de temperatura, filosofar é perder a vida e o exterior. abaixo de oito graus, não pensar é não ter cabeça.
é assim mesmo, como se fosse uma formula meio química meio existencial: o homem só pensa em determinados assuntos e com certa profundidade quando avança pela cidade com temperaturas abaixo de oito, sete, seis graus.
cada cidadão, enrolado no seu casaco, caminha com o rosto de quem reflecte longamente sobre o essencial. em Lisboa, em dezembro, pensa-se mais, isso é evidente.
Gonçalo M. Tavares
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