quinta-feira, janeiro 26, 2012

Lista de desobrigações

Sinto sempre que regressarei a todos os lugares sonde vou. Nunca me aconteceu estar numa cidade ou num país e pensar que tinha obrigatoriamente de ver algo porque nunca mais lá regressarei. Posso estar nos lugares mais recônditos e inusitados, mas nunca me sinto na obrigação de provar o bolo que só existe naquela região ou de apreciar determinada paisagem única. Eu sei que todas as paisagens são únicas e qualquer bolo é sempre único no momento em que é comido. A obrigação, principalmente a auto-imposta, é um dos maiores obstáculos à fruição tranquila, sem rugas de um espaço e de um momento. Ter de ir a um determinado lugar, ter de fazer determinada coisa, ter de consumir determinado produto. As listas de tarefas são úteis quando se tem de tratar do IRS ou da Segurança Social. Nas Seychelles, em São Tomé e Príncipe ou na República Dominicana, são uma perda de tempo precioso.

Já estive em Roma cerca de dezenas de vezes e nunca entrei na Capela Sistina. Não sinto a menor preocupação. Sem precisar de o repetir para mim próprio, sem palavras, acredito que, mais cedo ou mais tarde, terei essa oportunidade. Como aquela expressão da montanha e de Maomé, parece-me que mais do que ser eu a ir à Capela de Sistina deverá acontecer o contrário. Tenho essa impressão, mas não se trata de uma crença ilimitada. Eu não creio que, necessariamente, irei à Capela de Sistina. Conheço bem a fragilidade e a transitoriedade de tudo isto. Amanhã, ou ainda hoje, podem acontecer mil acidentes que me impeçam de regressar a Itália, a Roma ou, sequer, de sair da minha casa, da minha cama. Posso, com grande facilidade, parar de respirar. Ainda assim, concretizando-se esse destino, sei que se não fui à Capela de Sistina foi porque não era para ter ido. Estive noutros sítios, que me construíram e me definiram.

Na primeira vez que fui a Nova Iorque, não fui ao Metropolitan. Neste momento, já o visitei três vezes e, em cada uma delas, apenas repeti aquilo que quis repetir. Também nessa primeira vez, fui ao Guggenheim com intenção de visitá-lo, mas estava fechado. Depois disso, já passei várias vezes à porta desse museu, mas ainda não se conjugaram as circunstâncias que me permitissem entrar. Zero ansiedade em relação a esse assunto. Não sou capaz de expor todas as razões que fazem que encare as viagens desta forma, não creio que seja apenas uma questão de decisão, de vontade, de haver alguma raiz mais profunda. Em qualquer dos casos, posso garantir que é uma postura bastante confortável. Estar longe dos lugares que conhecemos melhor é um convite ao imprevisto. É muito habitual que os planos saiam frustrados: ou porque chove nos dias em que pensámos passear no jardim ou porque o mapa tem um erro de impressão. Em qualquer uma dessas situações, é de grande valor concedermo-nos a nós próprios a tranquilidade de apreciarmos um copo de água de uma torneira internacional, ou de caminharmos entre a multidão estrangeira, ou, simplesmente, de desfrutarmos de um qualquer pôr de Sol quase igual àquele que conhecemos desde sempre.

José Luís Peixoto escreve mensalmente na revista Volta ao Mundo




1 comentário:

Zé Carlos disse...

Estive a ouvir a entrevista que deu à Rádio Minha da LAC e resolvi visitar o seu blog. Gostei do que li e percebi que partilhamos um vício (Flickr) e uma preocupação (Luanda de hoje).

Gostei muito deste texto de José Luís Peixoto porque ataca o seguidismo e o que chamo de "turismo de guia" que carrega consigo uma série de males da sociedade de hoje, o "igualismo" e culto do póster, se vás à Paris tens MESMO de ver a Mona Lisa e se não tirares uma foto ilegal com o quadro, não estiveste no Louvre e por aí vai.

Lá se vão os tempos que alimentava um blog, hoje limito-me à alimentar a minha galeria no Flickr em que a minha Luanda, amada e odiada, ocupa um lugar especial.

Abraço,

Zé Carlos

www.flickr.com/photos/unroyal