quarta-feira, janeiro 23, 2013

o regresso


(...)
o som da sirene chegou ao sexto andar
dentro da viatura, o Ministro disse ao motorista que parasse ali, que fosse dar uma volta demorada, ele telefonaria quando quisesse se apanhado
mas o Ministro não queria ser apanhado
 - tens a certeza de que é este prédio? – perguntou antes de sair
 - é este mesmo, não está a ver o buraco ali, camarada Ministro?
 - sim
 - então, é este o prédio da Maianga com o buraco no rés de chão, esse buraco é mesmo antigo, chefe, posso lhe contar a estória...
 - agora não – interrompeu o Ministro que saiu da viatura
o seu GuardaAsCostas ia sair mas o Ministro mandou-o entrar novamente
 - mas, chefe...
 - é uma ordem, desapareçam-me das vistas
o GuardaAsCostas entrou apressado na viatura sem olhar para trás, as vendedoras olharam com estranheza para a roupa do Ministro
o motorista desligou a sirena, o trânsito estava impossível, as viaturas quase não se deslocavam. uma volta o quarteirão, ou duas, poderia demorar mais de quarenta e cinco minutos. um agente da polícia reconheceu, pela matricula do veículo, que se tratava de uma viatura do governo e fez sinal ao motorista sabendo se queria passar
o motorista fez sinal negativo com o olhar, o polícia mostrou-se confuso
o Ministro alcançou o prédio enxugando o suor da testa, guardando no bolso esquerdo o seu lenço amarelo, entrou na escuridão, subiu os primeiros degraus e escutou o som das águas pingantes, deixou os olhos conhecerem o escuro e as mãos absorverem a frescura
 - vocês está aí?
uma espécie de silêncio respondeu à voz grave do Ministro, o homem progrediu, ensopando os sapatos
 - ainda dizem que Jesus caminhava sobre as águas!, caminhava é o caralho! – irritou-se
ao ouvir ruídos na escadaria, procurou esconder-se na lateral de uma coluna gigantesca, um assobio demasiado afinado precedia a pessoa que descia
a sua própria respiração assustava-o, sabia-se escondido e num lugar impróprio, era um ministro trajando um fato caro, uma fina gravata de seda e sapatos comprados em Paris
resolveu agir, saindo do esconderijo, observou, pela acinzentada penumbra, o vulto que se aproximava e decidiu falar com tom autoritário
 - quem vem lá que se identifique imediatamente
ouviu o som do outro corpo cessar o movimento, e esperou
o tal corpo pousava algo no chão
 - estou de saída, sou o Carteiro sem bicicleta nem motorizada, apenas das cartas
 - que cartas? – indagou o Ministro
 - as cartas que escrevi
 - você escreve ou distribui as cartas?
o Carteiro aproximou-se, descendo os restantes degraus, sentiu o cheiro enjoativo do perfume caro do Ministro, adivinhou-lhe as roupas mas não soube quem era
 - o camarada ainda desculpe de perguntar, mas o senhor é quem então?
 - você não sabe quem eu sou? – começou a mover-se em direção à saída
 - até não sei
 - e é melhor nem saber
o Ministro voltou à luz do dia, apressado, tropeçou numa panela abandonada que MariaComForça deixara nesse espaço que não era usado para sair do prédio, as crianças que brincavam no passeio gozaram com ele, imitando o seu jeito de ajeitar a roupa e os óculos escuros
com os olhos, o Ministro procurava a sua ausente viatura
o transito mantinha-se intenso e o seu telefono tinha ficado esquecido na viatura ministerial, começou a sentir novamente o suor nascer-lhe no pescoço e nos sovacos
 - você não empresta o seu telemóvel? – falou para MariaComForça
 - bom dia, camarada
 - sim, bom dia, mas empresta ou não?
MariaComForça, num gesto banhado pelo seu sorriso, retirou o telemóvel, também suado, do interior do seu sutiã
o Ministro hesitou deixando a mão da senhora pendurada no ar, o Carteiro apareceu, com os olhos fechados, habituando-se à intensa claridade da cidade, o Ministro retirou o lenço do bolso, limpou o telemóvel e fez a chamada
 - estou-lhe a fazer ideia – disse, pensativo, o Carteiro
 - um momento, uma coisa de cada vez
a fila de mulheres sentadas parou toda a atividade para observar o homem de fato e gravata segurar o telefone da quitandeira com o lenço amarelo
 - mas o telefone tá sem saldo, minha senhora!
 - o senhor pediu o telemóvel. também quer saldo? posso pedir aos miúdos para irem comprar
 - já sei – interrompeu o Carteiro – o senhor é o camarada Ministro!, não sei se recebeu a minha carta...
 - mas qual carta?
 - a falar da ausência de meios de transportes nos serviços centrais dos Correios
 - ó homem – o Ministro transpirava e exibia um ar preocupado – você não tem um telemóvel?
 - tenho, mas é idêntico ao desta senhora
 - como assim?
 - assim mesmo, sem saldo
 - foda-se!
as crianças haviam feito uma roda à volta do Camarada Ministro
 - pode me devolver o telefone, camarada Ministro? – MariaComForça falou devagar
 - claro, não serve para nada
 - mas voltando ao caso, senhor Ministro, por favor deferencie a minha petição do veiculo de duas rodas
 - eu tenho mais que fazer, homem, fale com os seus superiores
 - mas o senhor, sendo superior assim no Ministério, e também superior do meu chefe, não é meu superior também?
 - você já viu algum Carteiro em Angola a circular de motorizada durante o expediente?
 - há sempre uma primeira vez, senhor Ministro, o senhor vai lembrar da minha carta, está escrita em papel de vinte e cinco linhas, com selo, cola branca e caligrafia de antigamente
o Ministro buscava a viatura com o olhar, suava muito, o Carteiro revistava o bolso convencido de que encontraria uma copia das cartas enviadas
 - e vocês, miúdos, não viram um carro azul, do Mistério? se calhar até está estacionado aqui perto, não querem ir ver ali naquela curva?
os miúdos sorriram, entreolhando-se
 - nós até nem podemos afastar daqui, camarada Ministro, as nossas mães não gostam
 - estas senhoras são vossas mamãs?
as mulheres acenaram negativamente
 - por isso mesmo é que não podemos afastar, camarada Ministro – falou um com os braços cruzados, em tom de troça – estas senhoras são as que queixam nas nossas mães logo à noite
o carro chegou, buzinando para afastar os carros civis que não pertenciam aos ministérios
 - camarada Ministro – o Carteiro tocou o Ministro no braço que o sacudiu e retomou a marcha – só queria lhe entregar a carta, pode ser que esteja aqui
o Carteiro seguia o Ministro em direçao ao carro, falando e revistando o seu saco, o GuardaAsCostas surgiu veloz e, mesmo tendo antes aberto a porta ao Misnitro, aplicou ao Carteiro uma queda tão rápida que as crianças não conseguiram mais tarde repeti-la em teatro de imitação
 - fica ai quieto até o carro começar a não ser mais visto, tás a entender? – falou o GuardaAsCostas enquanto aplicava uma forte bofetada na face do já estável Carteiro
a viatura moveu-se  e parou uns metros à frente
o Carteiro, já de pé, limpando a calça, voltou a sentar-se rapidamente, uma das crianças foi chamada pelo condutor, aproximou-se da janela e foi o próprio Minsitro quem lhe entregou um pequeno envelope
 - dá isto àquela senhora que guarda o telefone nas mamas
o miúdo, de regresso, ajudou o Carteiro com as cartas e outros papeis espalhados numa poça de água lamacenta, ensopada, e apanhou uma folha azul de vinte e cinco linhas
 - bonita a tua letra – disse a MariaComForça
 - estudei no tempo de antigamente – sorria o carteiro com o lábio inchado – levei muita porrada na escola para desenhar bem as letras
MariaComForça abriu o envelope entregue pelo miúdo, tinha dentro um cartão da companhia telefónica com saldo de 10 dólares
ela rasgou o cartão, apanhou de seguida a carta borrada de tinta azul e selos empapados
 - quer uma gasosa camarada Carteiro?
o Carteiro olhou para a rua onde o carro do Ministro havia desaparecido
 - não, obrigado, ainda tenho muito que fazer
 - posso guardar esta carta?
 - pode sim, tenho muitas. até amanha a todos
ajeitando o saco sobre o ombro, o Carteiro pôs-se a caminhar no sentido contrário ao da viatura ministerial.

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