terça-feira, maio 26, 2009

Kings Of Convenience como pano do fundo

Vêem-se melhor de noite, os olhos dos mortos. É por isso que eu gosto tanto de atravessar as noites em claro. Há dias, no fim de uma homenagem a Eduardo Prado Coelho, uma pessoa do público pediu que os oradores lhe explicassem  o que seria o “orgasmo vertical” de que Eduardo falara uma vez, numa crónica. O pedido poderia parecer uma provocação – mas o halo de bonomia de Eduardo pairava no magnífico Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, estilhaçando a possibilidade fácil da provocação. Porém, só pela noite dentro entendi que a resposta certa seria: a morte. Não o instante do passamento, mas a existência vertical e intensa que os mortos passam a ter em nós, quando de verdade os amámos. Todo amor é póstumo; enquanto vivemos tem a impiedade do sol, que tudo mostra, ou seja, tudo esconde. O amor vivo é uma roda de alegria e dor, conforto e tédio. Entontece e anestesia. Só sob o manto da noite silenciosa o amor revela o seu brilho magnético e o seu trajecto de inamovíveis acontecimentos. Quando falamos dos nossos mortos, usamos as palavras como lençóis ou bandeiras em que todos se assemelham – bons, bravos, inteligentes, tão comuns na imortalidade que nada os distingue. É útil o ritual desta lembrança: dá-nos a ver que os mortos não têm cor, nem raça, nem classe social, nenhuma dessas grilhetas que tanto nos tolhem os passos da vida. Quando evocamos esses que nos fazem falta no mudo desamparo das nossas almas de vivos, desdobramos os panos oficiosos e vemo-los fracos, humanos como foram, dobrados a trabalhos e vénias, sofrendo de ciúmes e invejas, sonhando em itálico, como se fossem eternos. Assim os evocamos na noite e no silêncio: pessoas frágeis tropeçando e caindo, enganando-se, sofrendo e preservando. É essa a sabedoria que eles nos oferecem: o conhecimento da vida desperdiçada, a evidencia do vão combate. Por isso são anjos, seres humanos que sobrevoam cada um de nós, secando-nos as lágrimas e sacudindo-nos a cobardia, e não santos capazes de nos falar do alto das nuvens, ou de nos abraçar em cordas de chuva. Só um dos meus mortos é santo, isto é, um mestre de memoria exemplar. Chama-se Haquira – um nome aberto em prece ou consolação. Dedicou toda a sua existência ao essencial: a descoberta do sentido particular de cada obra ou pessoa. O amor. Aplicou à doença a disciplina de serenidade que escolhera para vida. Arrumou os papéis, despediu-se de cada um dos seus vivos sem jamais lhes dizer adeus, escrevendo a cada um as palavras exactas que lhes sabia em falta, e preparando-se para continuar a escrevê-las, através das estrelas das noites infinitas de cada um de nós.

Outro dos meus mortos, quando era vivo, escreveu um romance chamado “Os Nós e os Laços”, reflectindo sobre as causas das guerrilhas sentimentais em que as pessoas se gastam, porque chamam amor a ambições e medos. Outro ainda escreveu um livro chamado “Valsa Lenta” em que os instrumentos da morte e da vida compunham uma única sinfonia. Na parede de um restaurante que ambos frequentavam, encontro-os sorrindo nas fotografias, ao lado de um outro morto que escreveu uma pagina sublime sobre o cemitério secreto em que ia enterrando os vivos que o traíam, continuando, depois do enterro, a sorrir e a conversar amavelmente com os seus fantasmas carnais.

É com os mortos que aprende o amor, e por isso o amor chega sempre tarde – demasiadas vezes, no desespero de matar a morte, o amor nunca chega a tocar-nos, ou toca-nos apenas como um arroubo do corpo, que no corpo se prende e se esvai. O amor é a arte de encontrar no rosto do outro o espelho dos nossos sonhos. Nesta noite que atravesso, procurando o caminho das palavras na luz intermitente que à lua entrega a terra, vejo, sobre as pedras da cidade, os corpos adormecidos e abraçados de uma rapariga e de um rapaz. Quando nascer o sol, apagando o sono e o abraço, vê-los-emos como a rapariga cigana e o rapaz cabo-verdiano que se apaixonaram e sofrem perseguição das cores, dos documentos, das famílias, e que por isso não têm casa nem dinheiro nem comida. Durante a noite, no entanto, as cores desaparecem, e os corpos abraçados destes amantes revelam apenas o lugar do amor. Ou da “beleza ética”, para recordar uma outra expressão feliz de Eduardo Prado Coelho, que sabia convocar a sombra que alonga as palavras e as faz caminhar, lentamente, para esse território sem fronteiras nem arestas que ele nomeava como a noite do mundo.

Inês Pedroso, Revista Única

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