Há dias calhou que eu deixasse na «caixa de comentários» dum blogue umas frases destratando o respectivo autor. Assinei «anónimo». O sujeito abespinhou-se, e uma das coisas que logo lhe saiu foi a acusação de cobardia: que se eu fosse homem, hein? e valente, hein? não me escondia no anonimato. Estive a pique de retrucar que, fosse eu homem, e valente, hein! estaria no mar, a enfrentar a natureza a bordo dum veleiro frágil, em vez de ler blogues, demais o dele, que não presta para nada. Mas o assunto esgotara-se, ou melhor, esgotara-se o prazer, o da malandrice, que deve ser acarinhado sem apelo à temperança.
Depressa percebi que os anónimos, maltratados há muito tempo, ganhavam em constituir um grupo de auto-ajuda. Os blogues com caixas de comentários, creio eu que só asseguram a possibilidade do anonimato para os agredirem com o argumento fácil da acusação de cobardia. Fácil porque é verosímil a suposição de que o anonimato esconde. Acontece que um comentário assinado «Anónimo» mostra mais do que esconde. Por exemplo: mostra que o comentador não quer que saibam quem escreveu aquilo; ou, por pudor, não quer que saibam que lê aquele blogue; ou ainda que renuncia a assinar o comentário. São coisas distintas, e alinho-as na ordem crescente de dignidade. Quem renuncia a assinar, é indisputável que o pode fazer por generosidade, no caso em que não reivindica vantagens de uma frase particularmente inteligente ou lúcida; ou por sentido crítico, tendo compreendido que a pertinência do que escreve não se decide pela presença do nome; ou ainda por sentido autocrítico, no caso em que sabe que nada do que escreveu é lúcido, ou elegante, ou sequer necessário. Porque escreveu, então? Decerto para satisfazer alguma inclinação, que devemos aceitar, ainda quando perversa, ou algum impulso, que devemos abster-nos de condenar: não se negue nem reprima o prazer proveniente do escárnio.
Pergunto-me, de resto, se o mal do anonimato não estará antes em certo vício dos que se assinam em ordem e exuberantemente. Há pessoas convencidas de que a aleivosia dita em voz alta — «com toda a frontalidade»… — ganha só por isso certo mérito. Daí ao passo seguinte, o sofisma: a aleivosia assinada teria mais mérito do que a anónima, que não teria nenhum. Escapa-me a razão. Mas o problema não é moral. Reparem: um sujeito faz imprimir em papel um artigo ou ainda um livro inteiro e arrisca-se a que, à mesma hora, outro sujeito lhe chame imbecil em Braga enquanto um terceiro, em Lagoa, lhe decora as frases em estado de adoração. Quem vai saber de um e outro? Anónimos, indeterminados, dizem o que lhes apetece, para si próprios ou para quem estiver a ouvi-los: chama-se a isso crítica doméstica. Os comentários no blogue quase trazem para dentro de casa a crítica doméstica, como que impelidos pela etimologia. A coisa roça a promiscuidade, e daí que o anónimo em parte atenue mas sobretudo represente a indeterminação: já é bom saber que alguém leu; melhor ainda que deixou rasto; mas o anonimato mostra, evidencia, testemunha – tudo em vez de encobrir – a indeterminação dos sujeitos da crítica doméstica. Situação análoga, para os escritores juramentados, seria ouvirem vozes sem verem os corpos que as proferem: «idiota», «cretino», «despautério», mas também «magnífico», «hilariante», etc. Bela cena, hein?
O anonimato é útil; mais: é desejável; aliás, é inevitável. Princípio regulador, testa os mais capazes pela exposição a juízos gratuitos, afirmações infundadas, sarcasmos ofensivos, e por aí fora. Uns clamam por discussão séria… A desfortuna é que há ocasiões apenas adequadas a lembrar a precariedade do que se diz, a vaidade inerente à publicação, o esquecimento ali à espreita, ocasiões como que causadas por alguma força superior, força anónima, justamente. Sempre que alguém barafustar que o anonimato não vai com a discussão séria, decidamos logo que é tolo ou puritano, e apenas ao segundo valeria explicar que há outras coisas na escrita ou na dita blogosfera além da discussão séria. Mas não se espere do puritano que sequer perceba que essa perturbação da fronteira entre a crítica impressa e a doméstica, afinal aquilo que lhe permite exprimir-se livre e imediatamente, dá aos outros, os indeterminados, a possibilidade e o prazer, logo, a legitimidade de o considerar irrisório e de lhe bater à porta para lhe dizer isso mesmo.
Crónica de Abel Barros Baptista publicada na revista LER nº75 e aqui.
3 comentários:
Muito bom esse artigo.
bjo
O anonimato é um direito. Por exemplo, muitos movimentos de libertação nunca teriam vencido sem o anonimato (mesmo o MPLA fez uso do anonimato). Muitas organizações de direitos humanos nunca teriam conseguido sem o anonimato. Muitas queixas contra a desumanidade, imoralidade violações dos direitos da mulher e das crianças são denunciadas devido ao anonimato. Sem o direito ao anonimato o mundo estaria perdido.
O anonimato é um direito e não deve de modo algum ferir ou fazer mal-estar ao outro(que vê a acção do anónimo). O anónimo tem o direito de usar do anonimato mas deve usar com fins constructivos: alertar, criticar, denunciar, motivar, exortar, etc.
No dia em que o direito ao anonimato se perder a humanidade virou um bando de bichos.
Para reflexão.
De uma anónima, claro.
PS: Em Angola, o anonimato é importante. Porque o MPLA não gosta da liberdade nem dos direitos humanos. Ele pejou o país de bufos, bajuladores, queixinhas e vingadores, já para não falar de assassinos e ladrões de trabalho.
querida anónima tem toda razão quando diz que o anonimato construtivo é positivo, se bem que em alguns casos há quem ache que a critica anónima só é bem vinda quando fala positivamente.
quanto a política, Angola não é diferente dos países que passaram/passam por um sistema centralizado ou como diz um conhecido, países onde a democracia foi tão bem maquiada ao ponto de perder a face real.
mas na blogosfera, infelizmente o anonimato irracional muitas vezes consegue o que quer.
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