(...)
o som da sirene chegou ao sexto andar
dentro da viatura, o Ministro disse ao motorista que parasse ali, que fosse dar
uma volta demorada, ele telefonaria quando quisesse se apanhado
mas o Ministro não queria ser apanhado
- tens a certeza de que é este prédio?
– perguntou antes de sair
- é este mesmo, não está a ver o
buraco ali, camarada Ministro?
- sim
- então, é este o prédio da
Maianga com o buraco no rés de chão, esse buraco é mesmo antigo, chefe, posso
lhe contar a estória...
- agora não – interrompeu o
Ministro que saiu da viatura
o seu GuardaAsCostas ia sair mas o Ministro mandou-o entrar novamente
- mas, chefe...
- é uma ordem, desapareçam-me das
vistas
o GuardaAsCostas entrou apressado na viatura sem olhar para trás, as vendedoras
olharam com estranheza para a roupa do Ministro
o motorista desligou a sirena, o trânsito estava impossível, as viaturas quase
não se deslocavam. uma volta o quarteirão, ou duas, poderia demorar mais de
quarenta e cinco minutos. um agente da polícia reconheceu, pela matricula do
veículo, que se tratava de uma viatura do governo e fez sinal ao motorista
sabendo se queria passar
o motorista fez sinal negativo com o olhar, o polícia mostrou-se confuso
o Ministro alcançou o prédio enxugando o suor da testa, guardando no bolso
esquerdo o seu lenço amarelo, entrou na escuridão, subiu os primeiros degraus e
escutou o som das águas pingantes, deixou os olhos conhecerem o escuro e as
mãos absorverem a frescura
- vocês está aí?
uma espécie de silêncio respondeu à voz grave do Ministro, o homem progrediu,
ensopando os sapatos
- ainda dizem que Jesus caminhava
sobre as águas!, caminhava é o caralho! – irritou-se
ao ouvir ruídos na escadaria, procurou esconder-se na lateral de uma coluna
gigantesca, um assobio demasiado afinado precedia a pessoa que descia
a sua própria respiração assustava-o, sabia-se escondido e num lugar impróprio,
era um ministro trajando um fato caro, uma fina gravata de seda e sapatos
comprados em Paris
resolveu agir, saindo do esconderijo, observou, pela acinzentada penumbra, o
vulto que se aproximava e decidiu falar com tom autoritário
- quem vem lá que se identifique
imediatamente
ouviu o som do outro corpo cessar o movimento, e esperou
o tal corpo pousava algo no chão
- estou de saída, sou o Carteiro
sem bicicleta nem motorizada, apenas das cartas
- que cartas? – indagou o Ministro
- as cartas que escrevi
- você escreve ou distribui as
cartas?
o Carteiro aproximou-se, descendo os restantes degraus, sentiu o cheiro
enjoativo do perfume caro do Ministro, adivinhou-lhe as roupas mas não soube
quem era
- o camarada ainda desculpe de
perguntar, mas o senhor é quem então?
- você não sabe quem eu sou? –
começou a mover-se em direção à saída
- até não sei
- e é melhor nem saber
o Ministro voltou à luz do dia, apressado, tropeçou numa panela abandonada que
MariaComForça deixara nesse espaço que não era usado para sair do prédio, as
crianças que brincavam no passeio gozaram com ele, imitando o seu jeito de
ajeitar a roupa e os óculos escuros
com os olhos, o Ministro procurava a sua ausente viatura
o transito mantinha-se intenso e o seu telefono tinha ficado esquecido na
viatura ministerial, começou a sentir novamente o suor nascer-lhe no pescoço e
nos sovacos
- você não empresta o seu
telemóvel? – falou para MariaComForça
- bom dia, camarada
- sim, bom dia, mas empresta ou
não?
MariaComForça, num gesto banhado pelo seu sorriso, retirou o telemóvel, também
suado, do interior do seu sutiã
o Ministro hesitou deixando a mão da senhora pendurada no ar, o Carteiro apareceu,
com os olhos fechados, habituando-se à intensa claridade da cidade, o Ministro
retirou o lenço do bolso, limpou o telemóvel e fez a chamada
- estou-lhe a fazer ideia – disse,
pensativo, o Carteiro
- um momento, uma coisa de cada
vez
a fila de mulheres sentadas parou toda a atividade para observar o homem de
fato e gravata segurar o telefone da quitandeira com o lenço amarelo
- mas o telefone tá sem saldo,
minha senhora!
- o senhor pediu o telemóvel.
também quer saldo? posso pedir aos miúdos para irem comprar
- já sei – interrompeu o Carteiro
– o senhor é o camarada Ministro!, não sei se recebeu a minha carta...
- mas qual carta?
- a falar da ausência de meios de
transportes nos serviços centrais dos Correios
- ó homem – o Ministro transpirava
e exibia um ar preocupado – você não tem um telemóvel?
- tenho, mas é idêntico ao desta
senhora
- como assim?
- assim mesmo, sem saldo
- foda-se!
as crianças haviam feito uma roda à volta do Camarada Ministro
- pode me devolver o telefone,
camarada Ministro? – MariaComForça falou devagar
- claro, não serve para nada
- mas voltando ao caso, senhor
Ministro, por favor deferencie a minha petição do veiculo de duas rodas
- eu tenho mais que fazer, homem,
fale com os seus superiores
- mas o senhor, sendo superior
assim no Ministério, e também superior do meu chefe, não é meu superior também?
- você já viu algum Carteiro em
Angola a circular de motorizada durante o expediente?
- há sempre uma primeira vez,
senhor Ministro, o senhor vai lembrar da minha carta, está escrita em papel de
vinte e cinco linhas, com selo, cola branca e caligrafia de antigamente
o Ministro buscava a viatura com o olhar, suava muito, o Carteiro revistava o
bolso convencido de que encontraria uma copia das cartas enviadas
- e vocês, miúdos, não viram um
carro azul, do Mistério? se calhar até está estacionado aqui perto, não querem
ir ver ali naquela curva?
os miúdos sorriram, entreolhando-se
- nós até nem podemos afastar
daqui, camarada Ministro, as nossas mães não gostam
- estas senhoras são vossas mamãs?
as mulheres acenaram negativamente
- por isso mesmo é que não podemos
afastar, camarada Ministro – falou um com os braços cruzados, em tom de troça –
estas senhoras são as que queixam nas nossas mães logo à noite
o carro chegou, buzinando para afastar os carros civis que não pertenciam aos
ministérios
- camarada Ministro – o Carteiro
tocou o Ministro no braço que o sacudiu e retomou a marcha – só queria lhe
entregar a carta, pode ser que esteja aqui
o Carteiro seguia o Ministro em direçao ao carro, falando e revistando o seu
saco, o GuardaAsCostas surgiu veloz e, mesmo tendo antes aberto a porta ao
Misnitro, aplicou ao Carteiro uma queda tão rápida que as crianças não
conseguiram mais tarde repeti-la em teatro de imitação
- fica ai quieto até o carro
começar a não ser mais visto, tás a entender? – falou o GuardaAsCostas enquanto
aplicava uma forte bofetada na face do já estável Carteiro
a viatura moveu-se e parou uns
metros à frente
o Carteiro, já de pé, limpando a calça, voltou a sentar-se rapidamente, uma das
crianças foi chamada pelo condutor, aproximou-se da janela e foi o próprio
Minsitro quem lhe entregou um pequeno envelope
- dá isto àquela senhora que
guarda o telefone nas mamas
o miúdo, de regresso, ajudou o Carteiro com as cartas e outros papeis
espalhados numa poça de água lamacenta, ensopada, e apanhou uma folha azul de
vinte e cinco linhas
- bonita a tua letra – disse a MariaComForça
- estudei no tempo de antigamente –
sorria o carteiro com o lábio inchado – levei muita porrada na escola para
desenhar bem as letras
MariaComForça abriu o envelope entregue pelo miúdo, tinha dentro um cartão da companhia
telefónica com saldo de 10 dólares
ela rasgou o cartão, apanhou de seguida a carta borrada de tinta azul e selos
empapados
- quer uma gasosa camarada
Carteiro?
o Carteiro olhou para a rua onde o carro do Ministro havia desaparecido
- não, obrigado, ainda tenho muito
que fazer
- posso guardar esta carta?
- pode sim, tenho muitas. até
amanha a todos
ajeitando o saco sobre o ombro, o Carteiro pôs-se a caminhar no sentido contrário
ao da viatura ministerial.